Doris Night, estrela de cartaz

Doris Night subiu ao palco e no fim de imitar o tema Shallow a uma só voz, semicerrou os olhos e imaginou como seria na pele de Lady Gaga, ter todos os dias à espera quando chegasse a casa, jantarzinho feito e mesa posta para um jantar romântico com um bonitão do calibre de Bradley Cooper.

De túnica vermelha da cabeça aos pés e enfeitada de lantejoulas, parecia a versão moderna dum Pai Natal da Disney, num filme deste ano com estreia marcada na noite de Halloween.

Mais do que a mensagem romântica na canção, comoviam-na os aplausos do público, e enquanto escutava desejava já agora que, além de ter jeito prá cozinha, o ator soubesse cozinhar e, à saída, a fosse buscar ao volante dum desportivo que a transportasse a casa.

Sentia-se esgotada mas dava para sentir no ar o aroma adocicado dos cigarros de menta que conhecia desde os dezasseis anos. Sentia-o vir para lá da distância que a separava, como no cinema, dos primeiros clientes sentados nas filas da frente, ali representadas por mesas de quatro lugares com vista privilegiada para o palco, que mais não era do que o espaço livre criado talvez pela falta duma mesa maior.

Conhecia de ginjeira o tipo de homem que frequentava o bar. Ali eram empresários endinheirados que numa mão seguravam um charuto e com a outra escreviam sms’s às amantes, desculpando-se com a vigilância apertada das esposas, para nessa noite não poderem sair de casa.

Outros eram políticos, assalariados, donos de pequenos negócios com funcionários em layoff por causa da crise pandémica, cinquentões frustrados, mal casados e até gays em busca de conforto pró desconforto de noutros lugares nem sequer em palco dispensarem a quem sabe cantar o tratamento que merece um verdadeiro artista.

Mas o cansaço traiu-a no momento em que menos esperava, em que era suposto só vir quando já estivesse deitada e virada para o lado em que costuma agradecer. No momento da vénia em que o corpo descreve um arco para agradecer, o pescoço não suporta o peso da cabeça e toda ela cai com estrondo no chão.

Acorda uma hora depois em casa. Alguém pôs uma chaleira ao lume, porque o sinal sonoro que vem da cozinha distingue-o facilmente da campainha da porta da rua que fica no lado contrário do corredor. Tentou mexer-se. Virou-se na cama e as tábuas rangeram. “Carlos”, perguntou uma voz feminina, “Sentes-te melhor?”.

Achava que devia ter passado por um estado de coma induzido. Era extraordinário não se lembrar de todo do que tinha acontecido, mas lembrar-se de naquele tom de voz a mãe tê-lo despertado no dia em que na escola percebeu que era homossexual.

“Despacha-te, vais chegar outra vez atrasado!”. Anos mais tarde percebeu que atrasado tinha estado na escolha daquilo em que queria trabalhar. Tantos anos perdidos a estudar, amarrado à ideia de se formar em Direito e afinal o advogado deu em artista, pois o mais perto que esteve de nalgum dia entrar numa Faculdade foi quando, para ir ao caraoque, descobria algum bar nas imediações de uma frequentada maioritariamente por homens.

Vestiu-se e saiu de casa apressadamente, sem um beijo de despedida, nem tempo para deitar na chávena de leite, uma colher de sobremesa de café solúvel, que disfarçasse a falta do sabor instantâneo do chocolate em pó. Lá fora, esperava-o Cristiano, que exibiu um sorriso bonito quando percebeu que não devia ser grave o motivo de tanta demora. Da janela, a mãe de Carlos disse-lhe adeus e viu-os afastarem-se conversando animadamente como se há imenso tempo não fizessem juntos aquele caminho da escola.

Sendo ambos alunos do 10º ano, era natural que tivessem menos de 16 anos, mas no caso de Carlos, que era franzino, tornava-se arriscado adivinhar a idade pela aparência. Era mais velho do que aparentava, percebíamo-lo à boleia do que dizia, não porque alguém tão novo não pudesse falar até melhor, mas sim porque se articular tão bem as palavras fosse natural na gente de tão tenra idade, já teriam naturalmente proposto para ser levada à AR, uma alteração legislativa no sentido de antecipar a idade de voto. Cristiano era o contrário. Viam-se-lhe despontar no rosto os sinais recentes duma barba mal feita. Era alto mas magro e na face gostava de passar uma sombra que lhe dava um ar doentio.

Não lembrava à mãe de Carlos que estivessem ambos à beira de chumbar por faltas. O filho, por mau comportamento, de tantas vezes ser expulso nas aulas de matemática e o amigo por abandonar a aula quando coincidia ser ao fecho e à saída não lhe apetecer fazer sozinho o caminho de regresso a casa.

Mesmo ao longe, vestido de negro, Carlos parecia uma sombra do que fora. Outrora alegre e comunicativo, à medida que progredia na adolescência, tornara-se introvertido e incapaz de retribuir através dum sorriso, o gesto cordial de alguém, mesmo próximo, que quisesse agradar. Não foi à custa de não ver o exemplo da mãe que se tornou tão antipático e impopular entre os colegas que, pelo segundo ano consecutivo, o elegeram como aquele em quem jamais votariam na eleição do delegado de turma.

Os dias na escola começavam com uma reunião informal entre colegas na sala de convívio, Carlos e Cristiano entraram sem fazer alarido e para a praxe dos cumprimentos juntaram-se ao grupo dos que partilhavam pelo heavy metal dos Iron Maiden uma paixão funesta. Carlos ficou à conversa e aguardou que, ao segundo toque, alguém lembrasse que estava na hora de ir prá aula.

Português, olha que sorte, a professora costumava faltar e como era segunda-feira, bom era que fosse bom pronúncio para toda a semana. Depois Geografia. Uma hora seguida a ouvir falar de bacias hidrográficas, só se fosse para valorizar o perigo de vir a haver tão pouca água no mundo que não valeria a pena desperdiçá-la toda a tomar banho.

Chegou atrasado e de castigo sentaram-no lá à frente ao lado do Afonso. Era o marrão da classe, o que tirava as melhores notas, mas por quem era tão difícil copiar num teste, como tentar decorar a matéria de vinte lições de História em meia hora. Por causa da caligrafia, que era horrível, os professores demoravam tanto tempo a corrigir, só o seu teste, como a inventar perguntas de cruzinha para todos de forma a poderem avaliar o conhecimento dos alunos sem terem de obrigá-los a escrever as respostas.

O mais marrão mas também o mais giro, diziam as raparigas, que suspiravam às escondidas como se admiti-lo lhes trouxesse o dissabor de poder vir a mudar de escola. Não lhes dava descanso, nem a presença simpática dele, nem a visão rara duns olhos intensamente verdes mas incapazes de lhes dar esperança. Achavam-no amaricado, os rapazes, que não satisfeitos por denegrir-lhe a fama, de bom grado lhe rapariam o cabelo que uma farta cabeleira coberta de caracóis era outra das coisas que nele elas mais apreciavam.

Tinha a secretária arrumada: lápis e borracha à mão, o estojo acima e o livro aberto duas páginas adiante na matéria, já adivinhando o tema do qual o professor falaria de seguida. Carlos sentou-se calado e permaneceu em silêncio e foi nessa quietude que o viu desenhar um coração e depois escrever de forma legível uma frase, como se ilustrasse a fotografia de alguém, em vez da projeção dum gráfico que vinha por baixo: gosto de ti.

Apanhado de surpresa, Carlos corou e só não trocou imediatamente de lugar, porque reparou que o único livre ficava ainda mais perto da secretária onde estava sentada a professora. Empalideceu quando olhou para o colega de carteira, agora muito menos à vontade do que num dia em que o ajudou a levantar-se duma rasteira que lhe pregaram numa partida de futebol. E assim como não era suposto ver para copiar num teste, fingiu que não tinha lido com o ar de quem perante o óbvio não entende o seu significado, como tantas vezes acontecia nas aulas. Quando tocou, levantou-se rapidamente e saiu, e por pouco Afonso não tropeçou na cadeira que parecia ter plantado no caminho para impedir alguém de segui-lo.

Durante uma semana, mal se falaram. A Carlos, passou a dar jeito chegar atempadamente às aulas, não fosse de castigo algum professor tornar a juntá-los, e assim não poder assistir de camarote na última fila às peripécias da aula. Mas o inesperado acontece e um dia foi Afonso que chegou atrasado. Com as filas da frente preenchidas, não restou alternativa a não ser procurar um lugar lá atrás ao lado de Carlos, que o cumprimentou sem franzir o sobrolho como seria expectável.

Ao lado do livro tinha o caderno aberto e apontou-lhe o sumário, depois o espaço onde gostaria de desenhar igual ao dele, o coração dum jovem ansioso por saber se tem sido à espera dum amor improvável que tem vivido ao longo dos últimos anos. Não obteve prontamente a resposta.

Não que logo nesse dia tenha mudado alguma coisa, a transformação foi acontecendo gradualmente. A semente do amor estava lançada e quando germinou nem sequer estávamos na primavera, mas despontou e deu flor, viçosa como o vermelho dum cravo a anunciar a mudança.

FIM