Uma aventura de Natal inesperada… – Ricardo Espada

António encontrava-se distante do mundo real que jorrava a uma velocidade incontrolável ao seu redor. Estava compenetrado apenas no jornal que tinha à sua frente. Todos os dias, depois de passear os cães, António deslocava-se até ao café Central, situado a 5 quilómetros da sua casa, sentava-se sempre na mesma mesa e lia o jornal, procurando uma notícia que o alegrasse. Um qualquer sinal de esperança que o removesse da incerteza em que vivia. António, um ex-serralheiro de alto gabarito, encontrava-se desempregado há 2 anos, desde que a serralharia onde trabalhou durante toda a vida tinha aberto falência. «A culpa é da crise!», argumentaram-lhe os ex-patrões enquanto lhe transmitiam a desgostosa notícia.

António, nunca se entregou à crise, e todos os dias percorria a secção dos classificados à procura da boa nova, de uma janela aberta que resolvesse o seu problema de tempo a mais.

 – Sr. António, está bem? Está há meia-hora a olhar para a mesma zona do jornal, homem! – disse-lhe a empregada do café que, entretanto, se tinha aproximado.

 – Oh, se estou! Se estou! – respondeu António, sem desviar o olhar do jornal. – Parece que chegou finalmente a minha oportunidade!

António, num gesto repentino e, totalmente imprevisível, levanta-se da mesa e dirige-se ao telefone do café, que se encontrava em cima do balcão, e começa a digitar freneticamente uns números. Para trás, ficou uma chávena de café estatelada no chão, e uma empregada de mesa a gritar de dor, com café a escaldar em cima da mão. António, nem deu por nada… Estava completamente concentrado no que tinha de fazer. Não podia deixar fugir esta oportunidade…

– Estou sim? – surge uma voz do outro lado do telefone.

– Boa tarde, o meu nome é António, e estou a telefonar por causa do anúncio para o lugar de Pai Natal. – retruca o António, ainda meio atordoado com o que estava a acontecer. Foram 2 anos de uma insana procura, que poderia encontrar agora um fim.

– Ah, o lugar para Pai Natal… Pois, parece que essa vaga já foi colmatada. Lamento. – responde-lhe a voz.

– Ai, já…? Oh… Mas, que pena… – notava-se na voz de António, que o mundo tinha voltado a ruir…

– Ah! Ah! Ah! Estou a brincar consigo! O lugar é seu! Apareça amanhã, por volta das 10 horas, na Rua Visconde de Sousa, lote 13 – diz a voz, num tom de completo gozo.

 – Ah, estava a brincar… Mas, o lugar é meu? Mas, nem fui sequer a uma entrevista… Como é que pode dar-me já o lugar? – disparou António, algo surpreso.

Mas, do outro lado da linha, não se ouvia nada. Um completo e absoluto silêncio. Tinham desligado.

No dia seguinte, lá estava António, na Rua Visconde de Sousa, no lote 13. Sentia um tremor estranho, quando parou em frente da porta alta, de ferro, toda pintada de um vermelho vivo e com uma maçaneta em forma de cara de Pai Natal. Por cima da porta, lá estava o número do lote, o “13”. Estava nervoso, mas avançou em direcção à porta quando, de repente, viu o mundo de pernas para o ar, e sentiu uma enorme dor na nuca. Tinha escorregado numa casca de banana que alguém tinha atirado para o chão, e caiu estatelado no meio do chão. Lentamente, e de uma forma algo estranha, António sentiu o dia transformar-se em noite, acabando por ficar tudo escuro. Um completo negrume, onde era imperceptível ver seja o que fosse. Tinha desmaiado, com a força do embate com a nuca no chão. Desmaiado, mais ainda consciente, António começou a rogar pragas à pessoa que, eventualmente, teria atirado aquela casca de banana para o chão.

Minutos depois, António começou a sentir a claridade a queimar-lhe as pálpebras, sinal de que estava finalmente a voltar a si. Abriu os olhos, e olhou em redor. Já não estava na rua, em frente à porta alta, de ferro, toda pintada de um vermelho vivo e com uma maçaneta em forma de cara de Pai Natal. Encontrava-se sim, dentro de um estranho veículo, cheio de sacos de prendas. A custo, António lá conseguiu sentar-se, e foi nesse preciso momento que se apercebeu que se encontrava dentro do trenó do Pai Natal! Assustado, gritou bem alto por socorro, quando foi interrompido por uma estranha voz.

– Pchiu! Estás maluco, ou quê?! Pouco barulho, mas é! Antes que leves duas galhetas bem dadas… Isto só visto, arranjam-me com cada personagem… Definitivamente, tenho de dar uma palavrinha à menina dos recursos humanos, para melhorar os seus critérios de escolha de Pai Natal!

– Mas… quem é que está a falar?! Eu… Eu… Não estou a ver aqui ninguém, sem ser eu e… esta rena estúpida… – solta António, num tom algo assustadiço.

– Esta rena estúpida? Olha o respeitinho, se não queres levar um coice nessa fuça! – responde a rena, visivelmente irritada.

– Eh lá, como é que eu estou… Assim, de repente, diria que acabei de ouvir uma rena a falar comigo… – exclama António, enquanto esfrega os olhos com as duas mãos.

– E ouviste mesmo, ó meu estafermo! – continuou a rena, bastante indignada com o desdém de António, por não acreditar que uma rena estava, de facto, a falar com ele. – Vá, vamos lá a despachar que temos muito para fazer hoje. Junto ao saco das prendas, tens aí uma lista com as moradas que temos de visitar hoje, para entregar as prendas. Vá, a postos! – continuou a rena.

– Calminha, aí… Ok! Está, de facto, uma rena a falar comigo. Mas, vamos lá a ver se nos entendemos: onde é que eu estou, e o que é que estou a fazer dentro deste trenó, com apenas uma rena atrelada? – diz António, tentando descortinar aquela situação algo perplexa.

Ai, a minha vida… Acho que é bastante simples o que se está aqui a passar, não? – responde a rena, bastante irritada com a falta de percepção de António. – Tu estás dentro de um trenó, carregado de prendas para serem entregues a petizes de todo o mundo, e tens apenas esta noite para o fazer. Por isso, vá: vamos a mexer esse rabo, que eu quero despachar as entregas todas, a tempo de chegar a casa e ver o “Sozinho em Casa 2”. Vamos!

– Isto é tudo muito estranho… Já agora, como te chamas? – pergunta António, tentando ganhar algum tempo para descortinar toda aquela situação bizarra.

– Chamo-me Rodolfo, e hoje irei ser a sua rena de serviço! Vamos! Partida, largada, fugida! – exclama a rena Rodolfo, demonstrando-se avidamente impaciente.

– Era o que mais faltava! Eu não vou a lado nenhum, sem ler  os termos e condições do meu contrato de trabalho! Farto de ser explorado, estou eu! E, se me obrigares, eu vou direitinho queixar-me ao tribunal de trabalho! – argumenta António, num tom ameaçador.

A rena Rodolfo, não apreciou de forma alguma a posição atrevida de António, e, imprevisivelmente, dá um enorme salto na direcção de António, atingindo-o no peito com a sua pata traseira bem esticada no ar, num gesto técnico que fez lembrar a António, os bons e velhos filmes de Bruce Lee, que tanto o fizeram vibrar, de uma forma bastante compulsiva, durante a sua puberdade.

– Se não vais a bem, vais a mal! – solta a rena Rodolfo, ainda em posição de ataque, preparando-se para investir novamente sobre António.

Aquele forte golpe no peito, deixou António a arfar como se alguém lhe tivesse a sugar todo o oxigénio dos seus pulmões. Quis responder ao ataque da rena, mas as forças tinham-no abandonado, e encontrava-se estendido à ponta do trenó do Pai Natal, sem conseguir levantar-se.

A rena Rodolfo, apercebendo-se da apatia de António, decide voltar a atrelar-se ao trenó e, num único e repentino movimento em direcção ao céu, levanta voo rebocando o trenó onde se encontrava António.

Subitamente, e como estava demasiado à ponta do trenó, António sente-se a escorregar pelo trenó afora, tal e qual um pedaço de banha a deslizar dentro de uma frigideira a escaldar ao lume. António cai do trenó, e antes de se estatelar no chão, a visão escurece, voltando o vazio e o negrume a fazer parte de si.

Por breves momentos, António ficou no escuro, pensando que tinha falecido. Que tinha desaparecido para sempre, o que talvez até fosse melhor para ele, visto já se encontrar bastante fatigado da vida de desempregado que levava. Mas não. A sua vida não tinha terminado ali. Aos poucos, a claridade começou a tomar conta de António, anexada a algumas vozes. António abriu lentamente os olhos, com medo do que poderia surgir no seu campo de visão, e deparou-se com duas crianças a fazer uma pequena guerra de bolas de neve.

Uma das bolas de neve atingiu António mesmo no centro da cara. Só assim ele se apercebeu de onde estava. Olhou em frente, e lá estava novamente a porta alta, de ferro, toda pintada de um vermelho vivo e com uma maçaneta em forma de cara de Pai Natal. Estava de volta ao início de tudo. “Que grande susto! Afinal, tudo não passou de um maldito pesadelo!”, pensou António ao olhar para a porta. Sorriu, levantou-se e bateu três vezes na porta. O som a oco que entoava da porta, provocou um calafrio a António, e eis que, de repente, a porta começa a abrir-se num ranger que até faria tremer de medo o destemido Chuck Norris.

António, nem queria acreditar no que estava atrás da porta. Uma pequena figura, verde, sorria graciosamente para ele. António, voltou a esfregar os olhos com as mãos, tentando descortinar se estava de novo num pesadelo. Voltou a olhar, e lá continuava a figura pequena, verde, a sorrir para ele.

– Olá, António… – a pequena figura decide, finalmente, quebrar o gelo, e soltar umas palavras. – Eu sou o duende Arak. Fico contente por teres vindo à entrevista mas, tal como te disse ontem ao telefone, o lugar é teu! Estás preparado para vestir a pele do grande Pai Natal, António? Anda, entra, estamos atrasados com as entregas!

– Hum?! Telefone… Pai Natal… Entregas… Não! Não estou preparado… Desculpe, mas… acho que vou andando. – diz apressadamente António, enquanto se virava e desatava a correr em direcção a casa. – A mim é que não me enganam, seus patifes! Pai Natal, uma ova! – disse António, correndo tão velozmente, que não conseguia evitar bater com os calcanhares no rabo.

– Ok… – diz o duende, encolhendo os ombros e voltando para dentro, fechando a porta vagarosamente, com esta rangendo sinistramente.

Dez horas da manhã, toca o relógio. Depois de um breve passeio com os cães, António volta, mais uma vez, a fazer o percurso de 5 quilómetros até ao seu local de eleição, o café Central. Entra, senta-se na mesma mesa de sempre e pede o jornal e um café à empregada de serviço.

– Então, Sr. António, como correu a entrevista de ontem? – pergunta a empregada, ansiosa por informações animadoras, enquanto assentava a chávena do café em cima da mesa.

– Não muito bem. O lugar… digamos que… já estava preenchido… – responde António, com um ar bastante desolado.

De seguida, folheia o jornal até chegar à secção dos classificados e, enquanto bebe um trago de café, o seguinte pensamento derrotista assombra-lhe a mente: “Enfim, e tudo começa de novo…”

FIM


RicardoEspadaLogoCrónica de Ricardo Espada

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