Guia de preparação do melhor bolo de chocolate do mundo

Fi-lo como das outras vezes. Numa tigela oval de barro comprada há um ror de anos numa feira em Lviv, na Ucrânia, minha terra-natal em tempo de paz, misturei aos ingredientes principais, duas porções iguais de amor e carinho, que envolvi com farinha à qual adicionei uma dose extra de fermento em pó, para a massa do bolo levedar por forma a encher uma forma larga onde já não cabia o meu orgulho por ter sido eleita chefe-pasteleira responsável por confecionar aquele que passou a ser considerado por toda a minha família como o melhor bolo de chocolate do mundo.

A meio da preparação do bolo, tivera o cuidado de pré-aquecer o forno durante 10 minutos a 220º, momentos antes de juntar as claras em castelo ao preparado anterior, onde juntara o chocolate, e terminar de bater à mão a massa, delicadamente com um par de varetas de metal como se o meu maior receio fosse quebrá-las e acabar por derrubar-lhe as paredes. Ao lembrar-me dos problemas que acarretaria essa perda de tempo, senti um calafrio percorrer-me longitudinalmente a espinha, vindo da medula, em resposta ao meu receio de que não fossem atendidas todas as preces e algo pudesse correr mal.

Estava tão empenhada em agradar ao casal de noivos meu amigo que mo encomendara há três dias, que era como se eu, que há tão pouco tempo os conhecia, fosse já a parte mais diretamente interessada na felicidade de ambos.

Era meu costume cozinhar para fora. Às vezes um Bolo de Gelatina que logo à partida conquistava aplausos graças a um visual garrido, terminando nos comentários favoráveis que, depois de prová-lo, se ouviam a toda a volta a seu respeito; outras, umas forminhas do tamanho de uma noz, feitas com a tradicional massa dos biscoitos de manteiga mas recheadas com creme de frutos secos que resultavam num complemento ideal para festas de aniversário ou simplesmente serviam para enfeitar a mesa numa ceia de Natal; e só mais raramente as famosas Ginjas Bêbedas, que permaneciam de véspera submersas em Vodka antes de serem incorporadas na massa do bolo feita à base de creme de leite condensado com farripas de amêndoa torrada na hora, de que se ia gostando cada vez mais à medida que se comia; ou um bolo de chocolate como aquele que acabara de fazer.

Para em nenhum momento me enganar, lera na receita as etapas passo-a-passo, e pesara minuciosamente os ingredientes que deitara a olho no prato de uma balança que estava mal fixada à parede por um prego e que tinha números grandes como os de um relógio com os ponteiros sempre parados no meio-dia.

Era sempre assim quando começava a cozinhar: de colher de pau na mão e avental posto como uma capa a proteger-me no meio de um temporal, sentia-me corajosa e vinha-me à memória ser a timoneira de um navio que haveria de saber fazer chegar a bom porto, mas à medida que o tempo escasseava e ainda nada estava feito, sentia-me insegura como se de uma rajada de vento forte precisasse, à laia de tónico, para seguir em frente.

Com tudo muito bem mexido, deitada a massa numa forma que ia ao forno durante aproximadamente 40 minutos, dava gosto ver que o resultado final alcançado consistia num delicioso bolo de textura aveludada, que sabia tão bem como aparentava, composto por sete finas camadas estaladiças unidas por um delicioso creme de noz, que para não se pensar que representavam o número de dias da semana, às vezes eram oito ou nove, do género daquelas de que se queixavam as pessoas a quem os dias passados a trabalhar custavam tanto a passar que sempre achavam que elas eram muito maiores e com mais dias do que era costume.

No final, deixava a massa arrefecer e por cima da cobertura de chocolate fino e mel espalhava trufas. Quem aprecia chocolate de qualidade às carradas, não consegue resistir-lhes. No meu caso, usava e abusava destes irresistíveis bombons que tanto serviam de complemento ao creme de natas de sabor exclusivo, no interior, como podiam ser usados na decoração exterior. Mal esta se trinca e assim que o recheio de creme de pasteleiro se desfaz na boca, até se voltar a dar uma dentada permanece intacta uma sensação de prazer que revigora o corpo e conforta a alma, ainda mais do que a quem passa uma tarde inteirinha relaxando, todo o conforto de uma salão de SPA. Na verdade, o prazer da primeira é tanto que não se esgota na segunda fatia a vontade de repetir esta experiência.

Há muitos anos, quando me apercebi da minha vocação culinária, inspirei-me na antiga receita conventual de bolo de chocolate da minha avó, trazida por minha mãe à surdina de casa dos pais dela, e dediquei-me, ainda tão nova que podia confundir-se esse meu desejo de aprender a cozinhar com a necessidade de arranjar comida para as bonecas, a criar novos pratos de que ia dando a provar lá em casa.

Todos gostavam do que eu fazia, mas a minha avó, que era tão boa cozinheira como lerda a perceber o que se estava a passar, não viu logo as modificações que eu introduzira na receita original destinadas a melhorá-la, e ainda durante muito tempo continuou a chamar-lhe sua. Mas na verdade ela já era minha.

Tinha vontade de dizer-lhe que dela eram somente as receitas de sucesso feitas a partir da junção de ingredientes que pela mão de uma cozinheira inexperiente dariam certamente um prato diferente e com menos motivos para ser lembrado do que se fossem comidos em separado, mas faltava-me a coragem para fazê-lo e ajudá-la a acreditar que só minha era agora a receita daquele bolo e de minha autoria era a melhor frase criada por alguém para defini-lo como a um “ bolo em que ao elegê-lo como o seu principal ingrediente, elevava o chocolate à categoria dos alimentos sem os quais ninguém podia viver.”

Tudo começou há muitos anos na Ucrânia, país de onde sou oriunda, mas ainda hoje quando lá vou e nos junta para ouvirmos as suas histórias, o meu pai costuma contar, por graça, que fiz o meu primeiro bolo com água e farinha aos 4 anos, para agradar à minha mãe que andava novamente de desejos e fez lá em casa acreditar que tinha voltado a engravidar, pela 4ª vez no espaço de apenas 5 anos.

Caminhávamos a passos largos para o fim do Inverno e o consequente início da Primavera, que é a estação do ano em que, no meu país e à semelhança dos Estados da Europa de leste, o espesso manto de neve nos campos começa a derreter dando lugar a paisagens enfeitadas com flores de mil cores que despontam apontando ao céu.

A nossa família era já numerosa, e eu ainda muito nova para compreender o que tornava tão férteis as mulheres da minha família. Tinha mais de uma dezena de primos, divididos pelas tias que descendiam da minha avó materna como se fossem ramos de uma árvore centenária que, por seu lado, tinha gerado diversos rapazes e raparigas. Percebi que era idêntica a elas que eu queria ser, para poder igualmente gerar filhos que viessem a sentir por mim um amor igual ao que eu sentia pela minha mãe, a mulher mais afável e generosa que conheci, ao ponto de retribuir com sorrisos as minhas traquinices e as dos meus irmãos.

Mas se daquela vez resultara numa história que ficou para contar o aviso da falsa gravidez, o mesmo não se pode dizer de quando dali a uns meses a mesma veio a concretizar-se. Ao fim do tempo normal de gestação, com o nascimento do meu irmãozito mais novo tornei-me na mais velha dos 4 irmãos que passámos a ser numa pequena casa rural onde cabíamos apertados mas onde assim mais facilmente podíamos cuidar uns dos outros.

Nasceu Ivan, que o meu pai assim batizou, com o nome de um grande conquistador para assinalar também a conquista que foi a minha mãe ter conseguido trazer ao mundo um menino, no seio do nosso universo familiar que era claramente dominado pelas mulheres.

Ivan juntou-se a mim; à minha irmã Lyubov, cuja palavra traduzida para o Português significa Amor mas cuja personalidade inspira admiração e coragem, um ano mais nova do que eu; e à mais nova das meninas que sempre foi Vira, que traduzindo à letra quer dizer .

E se pensarmos que Nadiya (Nádia), o meu nome, representa Esperança, bem podemos afirmar que na escolha criteriosa que fizeram para os nossos nomes, os nossos pais, talvez em sinal do Amor que sentiam um pelo outro, já depositavam em nós uma tão grande que os animava a Esperança de que, no futuro, nós e o nosso irmão viéssemos a realizar todos os nossos sonhos. Os meus passavam por me vir a tornar pasteleira e aprender a fazer bolos tão bons que as pessoas pudessem olhar com admiração e devorar com prazer.

Quando fiz 16 anos e ao saberem que não pretendia ser professora, contrariamente ao desejo comum às meninas daquela época, a minha mãe resolveu presentear-me com um caderninho de apontamentos depois de ter-me mandado sentar no banco da cozinha para anotar as receitas que ela própria ditava.

E foi desse conhecimento, que herdei e passei a proteger como faziam os templários aos maiores tesouros da Cristandade, que retirei o ensinamento de que me sirvo para hoje em dia, e com a ajuda sobretudo de açúcar, ovos, farinha, mel e chocolate moldar um bolo de chocolate que se ajusta ao paladar de cada um de nós, se mastiga com prazer e se nos descola tão facilmente do céu-da-boca como da forma bem untada da qual o retiro ainda quente libertando um delicioso cheiro do qual fica a cozinha impregnada e se espalha lentamente pela casa.

Em boa verdade vos digo que não há um segredo para que esta minha receita de sucesso resulte num bolo sempre igual e que em todas as ocasiões, à vista das outras pessoas, pode parecer ser o mesmo. Devo realçar que muito mais do que da adição de qualquer ingrediente secreto aos que anteriormente revelei, a classificação de Melhor Bolo de Chocolate do Mundo deste que eu faço, deriva diretamente do amor que uso na sua confeção e que nunca uso apenas em dose q.b..

O amor, tempero da nossa existência e da continuidade do qual depende também a relação, enquanto casal, dos meus amigos que à pressa já tinham decidido casar-se quase antes de se conhecerem, está presente em cada um de nós e dele devemos dar testemunho aos outros.

Vou casar brevemente e prevejo vir a ser feliz como eles, embora creia que a curto-prazo terão motivos para celebrar mais frequentemente do que eu, que só quando puder ir à Ucrânia e rever a minha família, cuja segurança me apoquenta por causa da perigosa situação militar com a Rússia, me sentirei realizada, ainda mais do que quando concluo mais um bolo de chocolate que consideram ser o melhor que há no mundo.

FIM

NOTA FINAL:

Para que os caros leitores possam ver de que bolo se trata este de que falei e comprovar o seu aspeto sedutor, deixo o link da página do face desta minha amiga que os faz com uma mestria de que eu não consigo socorrer-me para com exatidão descrever o prazer que senti ao comê-lo.

https://www.facebook.com/media/set/?set=a.211744812180942.54507.100000362737608&type=1&l=7fb5e27a02