Le Mans: Passado e Futuro

Caro Leitor, Junho é sempre um mês singular no calendário do Automobilismo. Para além das mais variadas provas, existe uma que se destaca das restantes: 24 Heurs du Mans. É uma prova mítica e faz parte de Campeonato Mundial de Resistência.

O WEC (World Endurance Championship) é um campeonato organizado pela FIA e pelo Automobile Club de l’Ouest (ACO). É um campeonato destinado a protótipos de corrida (classe LMP1 e LMP2) e carros de turismo (classe GTE-Pro e GTE-Am) tanto para pilotos profissionais como para pilotos amadores com um profissional na equipa. As equipas podem ter um carro super rápido, mas de que serve um carro rápido se este é inconsistente (em termos de tempos) ou se não consegue chegar ao fim da prova? Por isso mesmo as equipas têm que ter um carro rápido, consistente (mesmo que se sacrifique alguma velocidade) e que consuma o menor possível e que poupe o material ao máximo. Para além da prova ser um teste completo para o carro, é importante não esquecer o que sofrem os pilotos.

A prova inaugural ocorreu em 1923, mas a ideia remonta a três anos antes Nesse ano o ACO tinha o intuito de criar uma competição marcada pela inovação tecnológica e pelo desenvolvimento automóvel. Dois anos mais tarde a organização anuncia uma prova de resistência em Sarthe. Na altura as 33 equipas eram compostas por 2 pilotos, ao contrário dos 3 pilotos que hoje constituem uma equipa.

O evento ocorre em Junho e as condições não são fáceis: o tempo quente e a pouca ventilação dos veículos (aqueles que são fechados, claro) fazem das 24 Horas de Le Mans um evento bastante difícil de completar.

Le Mans

O Circuit de la Sarthe é um circuito não permanente, isto é, um circuito constituído por pista (propriamente dita) e por estradas nacionais e tem uma extensão de 13650 quilómetros de distância, com uma recta de 5 quilómetros de cumprimento. A recta foi encurtada, através de duas chicanes, para evitar acidentes, uma vez que os carros chegavam facilmente aos 400km/h. As chicanes foram colocadas porque os carros teriam que ter uma quantidade reduzida de apoio aerodinâmico para chegar a tais velocidades. No entanto a ausência de downforce fazia com que os carros levantassem voo durante a prova. Além deste “inconveniente”, os pneus sofriam pressões elevadas, e isto aumentava a probabilidade de se deformarem e rebentarem. A juntar ao problema das elevadas velocidades, é importante relembrar que competem carros com menos potência, e logo com um top speed de 100km/h a 150km/h a menos que os carros mais rápidos. Ainda hoje os pilotos chegam aos 330km/h (iguais velocidades de um F1), mas ainda assim as chicanes não estragaram o espectáculo.

É certo e sabido que a sua singularidade influenciou outros eventos. Exemplo disso são as 24 horas de Daytona, Nürburgring, Spa-Francorchamps e Bathrust. Além disso o American Le Mans Series e o European Le Mans Series têm inspiração regulamentar nas 24 horas de Le Mans. Existem ainda as 24 horas de Karting, de motociclismo (apenas na versão pequena do Circuito de Sarthe) e o Le Mans Classic, onde os protótipo de corrida são clássicos. Le Mans não passa de uma etapa do campeonato de resistência, mas no entanto, carrega um simbolismo e uma marca histórica enorme que não passa despercebida a qualquer adepto de desporto motorizado.

O modelo GP (Grand Prix) é o formato dominante nos regulamentos da esmagadora maioria do desporto automóvel. Le Mans foi projectado para ser um teste diferente. Em vez de se focar na velocidade pura e dura, a mítica prova exige que os fabricantes produzam algo bastante fiável. Isto fez com que as marcas incentivassem a inovação e construíssem carros mais resistentes e eficientes, uma vez que um protótipo de Le Mans tem que aguentar exigência ao mais alto nível, até porque os desenvolvimentos tecnológicos adquiridos em provas como Le Mans são implantados em carros disponíveis ao público geral.

Inicialmente não havia qualquer tipo de regras sobre o número de pilotos que uma equipa deveria ter, ou até mesmo sobre o tempo limite de condução. Nas primeiras épocas a maioria da equipa usava dois pilotos, havendo mesmo equipas a correr apenas com um piloto (de forma a reduzir o tempo de troca nas boxes). Mais tarde esta prática é proibida e no final da época de 80 os regulamentos estipulam um número mínimo de 3 pilotos por equipa. Na década seguinte, graças às velocidades exigidas e respetivas forças, os regulamentos estipulam um número máximo de horas (14h no total, nunca excedendo 4h seguidas).

Para além do legado histórico, Le Mans também é caracterizado pelo desenvolvimento tecnológico no mundo automóvel. Para se fazer um bom tempo, é necessário que o carro tenha uma velocidade máxima bastante alta. Em vez de reduzir o peso do carro, os construtores, como é o caso da Bugatti, melhoraram a aerodinâmica dos carros de forma a criar menor resistência ao ar, fazendo tempos mais rápidos através de velocidades mais elevadas. Com o tempo, os construtores adoptaram carros aerodinamicamente mais eficientes, sem descurar a potência dos mesmos.  Para além de se ter suavizado as linhas da carroçaria, ainda foram inseridos spoilers traseiros. Tal acréscimo veio aumentar o downforce dos carros, aumentando o desempenho por volta em detrimento do desgaste dos pneus. No entanto as vantagens eram superiores às desvantagens.

Le Mans

Para além de desenvolvimento aerodinâmico, Le Mans também foi alvo de um desenvolvimento puramente tecnológico, nomeadamente com a participação de carros com motores acima dos 8000cc, a vitória do motor Wankel, a inclusão de biocombustíveis e tantos outros exemplos. A inclusão de veículos híbridos (duas fontes de alimentação) é uma das imagens de marca que a prova mítica tem actualmente. Para além da eficiência desportiva, a preocupação pelo meio ambiente é evidente através da adopção de carros com uma tecnologia de ponta. Tecnologia essa que será aplicada mais tarde à produção de carros de estrada. Um exemplo da aplicação de tecnologia de ponta é o KERS (Kinetic Energy Recovery System). Este sistema armazena uma quantidade energia eléctrica proveniente das travagens. Mais tarde a energia armazenada é libertada para as rodas em plena aceleração, tornando os carros mais rápidos e com uma necessidade menor de potência proveniente do motor.

Apesar de toda a história que carrega, Le Mans é um dos exemplos em que o desenvolvimento tecnológico só veio dar mais brilho à prova em questão. Com uma preocupação cada vez maior em relação à eficiência energética, muito ligada à protecção do meio ambiente, Le Mans consegue dar anualmente uma prova única e com um especáculo que chama cada vez mais público. É a prova viva que as corridas de resistência ainda têm um longo caminho a percorrer.

Posto isto só me resta desejar boas leituras…e da próxima vez que o estimado leitor for acelerar, não se esqueça de colocar o capacete!