“O Luto tem um prazo, o Amor não” – Uma carta para ti

Não há dia nenhum que não pense em ti, que não te olhe ou não te escute naqueles pequenos nadas que agora são tantos.

Aquela estadia em casa da avó, todos os meus dias até entrar para a escola, onde que me deixavas pela manhã, e onde me ias buscar ao final da tarde, por vezes com a maldita hora de Inverno já bem noite escura.

Recordo bem as viagens de carro por entre as estradas do Monsanto até à marginal, e as luzes bem conhecidas ao entrar em Paço de Arcos.

Chegava a casa. Chegávamos, tu e eu.
E riamos pelo caminho, e falávamos, e riamos muito… Foste aliás sempre, e até ao fim, das pessoas com o sentido de humor mais apurado que já conheci…E que sorte, eras meu pai.
Às vezes, numa daquelas pequenas quedas que as crianças de dois anos costumam dar, nem tinha tempo de chorar… assim que te certificavas de que estava bem lá rias com aquele teu jeito engraçado que ainda hoje ouço no meu pensamento, e fazia-me rir…e foi das melhores coisas que me deixaste…

Finalmente o elevador subia e lá encontrava o doce e terno sorriso da minha mãe, sempre atenta a tudo e com tudo já preparado com mil cuidados, embora recém chegada, também ela, do seu intenso dia de trabalho.
Que saudades tinha dela, e tuas, apesar de rever o seu rosto nos olhos calorosos e no abraço quente dos seus pais, e recordar-te também a ti nas suas conversas e palavras ao longo do dia, todos os dias da semana.

O cheiro da comida acabada de fazer no fogão, teimava em dar aquele doce ar de casa a esse lar, que era o meu, apesar das muitas tentativas de um exaustor que teimava naquele barulho ensurdecedor, arrepiando-me os cabelos e deixando-me fortemente incomodada.

Detestava o barulho…e, bem mais importante do que isso, adorava o cheiro da comida pela casa…
Ouvia, satisfeita, todas as histórias do dia de trabalho que tinhas tido, as sensatas palavras da minha mãe, e o teu riso por entre comentários vários, em tom divertido quase sempre, enquanto comia sentada no meu lugar…

Passaram-se anos, alguns…poucos para quem queria que passassem agora muitos mais…Mudou tudo…
Passou o tempo que podíamos ainda ter…
O destino não o quis, a vida não deixou.

O luto de seis meses, de acordo com a “minha” ciência, de seu nome Psicologia, é apenas uma vaga miragem que nos conduz ao rótulo certo de quando agir…Isto é, de perceber quando se torna o luto patológico ou não…

Mas não é do luto que se fala quando se escreve.
É da vida que se fala, a que recordo todos os dias, como se aqui continuasses.
É bem verdade que a dor e a saudade permanecem e teimam em aparecer como raras vezes as pessoas a podem sentir.

Só tenho um pai. Muitos de nós só têm um pai.
E esse pai não morre nunca, nunca enquanto vivermos.
Quando um pai nos deixa, todas as nossas referências mais profundas são abanadas na sua estrutura.
O nosso porto de abrigo durante tão importante parte da nossa existência deixa de lá estar de verdade…
Não há luto. Há saudade.

Mas não há mais dor do que há amor, e o amor é eterno.
Os pais não morrem, nunca, porque ficam para sempre no imaginário que deles criamos desde que somos pessoas.
Como se faz um luto para esquecer a perda que não podemos sentir?
Não podemos esquecer a perda, porque da sua lembrança depende a memória de quem viveu, de quem foi para nós tão importante, de quem nos deu vida.
Não importam as tribulações da vida, o afastamento lógico que a vida pode causar, não há quem apague a memória dos pais que temos, nunca enquanto vivermos.

Se maus foram, como em casos graves de abusos e maus tratos, o luto é feito muito antes de qualquer partida. É o luto que se faz por gente viva, que não foi pai ou mãe de verdade. Este tipo de pessoas, por vezes, nem gente de verdade são, são criaturas, como lhes chamo, que por acaso geraram pessoas, e essas sim, que encontram colos e amor noutras pessoas que por ventura não lhe eram nada, e que passam a ser tudo.

Mas se pais e mães são, de verdade, o que permanece é eterno, muito para além da vida.
Deixam-nos parte do que nos torna aquilo que somos, são as primeiras pessoas que amamos, com quem nos zangamos, com quem aprendemos a ser pessoas crescidas.
Um dia partem…por vezes partem em vida ainda, quando se perdem de si…Outras vezes partem de vez.
Depois?… Depois parece que o tempo passa…e que passa muito tempo…uma saudade como se fosse há muito tempo que tão importante pessoa partiu, mais do que o tempo real…Queremos tanto ouvir aquela voz e ver o olhar…o telefone a tocar…

Passa muito tempo, mesmo que tenha passado muito pouco… e o tempo não leva a saudade…
E a saudade torna mais próxima a pessoa querida que partiu, mas que não perdemos nunca…
E se nunca a perdemos, não há luto, há a lembrança e a memória daquilo que nos deixou. E deixou-nos tanto.
Hoje lembro com saudade o rosto que me acarinhou quando da minha chegada ao mundo, e que vi partir mais cedo do que o esperado.
Lembro-me eu…tal como tantos de vós que também lembram…
Não lembro a tua partida… lembro sim a minha chegada, porque é ela que nos lembra dos nossos pais como os conhecemos, porque já eram gente antes de nós…porque foram eles que nos fizeram aqui chegar…

Hoje também celebro a vida…dos que estão e dos que já estiveram…Porque ela é mais importante do que a partida…E porque devemos celebrar a vida todos os nossos dias, numa dádiva, num abraço, que torna todos os dias importantes…
Quando os pais partem, abanando a estrutura do que fomos e do que somos, só apaziguamos a alma quando lembramos a vida…Quando eram vivos e faziam, porque ainda fazem, parte destes nossos dias.

Recordamos então a vida que deixaram, com amor, todos os dias, e não há um só dia que não os lembremos…
Lembrar o pai ou a mãe que parte, faz parte de quem somos, e daquilo que queremos passar e transmitir à nossa descendência…as nossas raízes…
Hoje, todos os dias, celebro a vida dos que amo, e recordo, com saudade, a vida dos que partiram.
Evito lembrar o fim, a doença, ou a dor da partida.
Lembro e transmito o seu carácter, aquilo que de melhor tinham, e até as experiências do pior que possam ter tido, aquilo que por ventura mais os ensinou, o que me fizeram questão de passar, e que agora, ao longo do tempo, transmito à minha descendência…
Ensinamentos que passam de geração em geração.
Lembro-te com saudade, com profundo amor…todos os dias…E também não te quero esquecer, nem o pretendo…
Devemos esquecer o mal…nunca o bem… Porque motivo havemos nós de esquecer quem nos amou e quem amámos?
O bem imenso que nos trouxe?…
Não te esqueço a ti…nem quero esquecer nunca os meus avós e bisavós… as raízes do que fomos, as nossas origens… Uma árvore genealógica de afetos, porque o que se sente também se transmite, numa espécie de genética da alma que deixa a marca inexorável do amor, como do ódio até que seja contrariado, de geração em geração…
Sem essa marca, talvez não soubesse amar…
Sem raízes e origens, talvez não pudesse ser uma cidadã do mundo, porque só pode ser cidadã do mundo quem conhece as suas raízes, as aprendizagens que foram feitas e que nos são transmitidas ao longo de gerações, como os afetos…

Ensinamentos que vamos passando e transmitindo, com mais um pouco de nós e das nossas histórias, das nossas vidas e do que vamos sentido de novo, também aos nossos herdeiros…
São memórias que nos modelam o carácter, que muitas vezes nos dão força nas alturas mais árduas, que são referências que carregamos connosco, por vezes com maior peso do que a hereditariedade biológica…

Memórias e sentimentos, histórias…
Enquanto celebramos a vida do Hoje, não podemos, nem queremos, creio eu, esquecer o nosso passado e a nossa origem…
E os pais congregam as raízes do que somos no nosso ser mais profundo, de forma direta e única…
Caminhamos rumo ao futuro, trazendo na nossa bagagem a maior riqueza do mundo:
O amor que sentimos e que, por o sentirmos, podemos dar…
A importância que para nós a paternidade e maternidade têm…os afetos mais fortes…
O luto pode até ser seis meses… E a dor da perda pode até ser uma vida…
Felizmente o amor e as memórias são eternas… Não têm prazo…E, mais importante, não devem jamais ser esquecidos…