O sintoma

Não é fácil para qualquer democrata concluir da estagnação política do seu país. Pior: não é sem alguma tristeza que se conclui ser essa estagnação não apenas a realidade material presente mas a mais que provável realidade material futura. Qualquer transformação real, palpável dessa realidade exigiria vontade em duas populações muito concretas: ou do conjunto dos representantes políticos eleitos, actualmente em funções, e principais favorecidos pelo status quo vigente; ou do conjunto dos cidadãos, investidos do seu papel de avaliadores da qualidade da representação que os primeiros exercem, e principais destinários dela. Desta vez pronunciar-me-ei apenas relativamente à primeira.

Seria profundamente redutor, simplista e ingénuo – para além de injusto – incorrer naquelas generalizações fáceis com que gostamos de arrumar os outros mas que nos indignam sempre que somos os visados: de que são todos iguais, movidos pelo mesmo interesse mesquinho pessoal. Além disso, repetir essa generalização é fazer o jogo daqueles que, sendo responsáveis, gostam de diluir a sua responsabilidade pelo todo. Não o farei. Em Portugal, desde 1975, praticamente só três partidos foram eleitos para serem maioria parlamentar e Governo da República, o que significa que tudo aquilo de que nos queixamos diariamente tem sobretudo esses três autores, e é a eles que essa responsabilidade tem de ser atribuída.

De entre os organismos de natureza política existentes na nossa Democracia há um que devemos usar como sintoma da sua saúde: chama-se Conselho de Estado, e fora os mecanismos de nomeação – e respectivas motivações que infelizmente contaminam qualquer nomeação desta ordem – que não discutirei, interessa-me tomá-lo como exemplo precisamente da forma como a Política é entendida e praticada no nosso país. Um Conselho pretende, neste âmbito, oferecer perspectivas relativamente à situação do país, aos seus problemas e potenciais soluções, permitindo àquele a quem a vontade última sobre os destinos do país pertence uma visão mais panorâmica, mais completa, e (espera-se) mais rica. O actual Conselho de Estado, na sua composição actual, nos interesses político-partidários que representa, não serve esta pretensão. Ao invés de contribuir para tornar mais diverso o ponto de vista presidencial, o actual Conselho de Estado demonstra-se da mais absoluta inutilidade política, ainda que paradoxalmente possa demonstrar-se de grande utilidade cívica. Em que sentidos?

Primeiro, pelo facto de a esmagadora maioria dos Conselheiros representar precisamente os mesmos interesses que comandam a vida política, económica, financeira e empresarial do país – ou seja, representa precisamente os responsáveis pela situação para a qual deveriam oferecer soluções novas, quando não agentes novos também eles. Organismo que assim se assume de natureza centrípeta, arrisca-se a reconstituir os célebres pares do Reino enquanto bolha de alheamento da realidade: perante um status quo que favorece e eterniza certas formas de poder e certos agentes no seu exercício, dificilmente os conselheiros apresentariam ao decisor último (o Presidente) iniciativas, para não dizer sequer formas de perspectivação dos problemas, que belisquem esse status quo. Não se espera – senão com grande ingenuidade – que os Conselheiros de Estado provenientes da esfera de PS e PSD suscitem qualquer iniciativa ou perspectiva política que questione o bipartidarismo enraizado nas nossas instituições. E isto acreditando que o próprio Presidente, cuja acção de branqueamento dos alicerces do Estado de Direito que jurou defender é a exacta antítese do discurso de transversalidade apolítica com que assumiu funções, agiria nesse sentido se instado a tal.

Segundo, pelo facto de que a obscenidade evidente desse marasmo poderia – deveria… – mover os cidadãos a recusar a continuidade em funções de todos estes agentes comprometidos com este business as usual político-institucional. Que alguma utilidade construtiva poderia daí resultar que permitisse imaginar um futuro onde não sejam compensados aqueles a quem a censura e a vergonha melhor figurariam na lapela. E isto, claro, considerando que os cidadãos têm a necessária lucidez para esse diagnóstico – o que é duvidoso – e que, tendo-a, dela estariam disponíveis a fazer bom uso – o que é improvável.

Assim, parece corresponder ao Conselho de Estado, particularmente à sua crónica composição partidária e à sua inconsequência cúmplice e interessada, uma Cidadania igualmente cúmplice na sua apatia: ambos merecendo-se na forma como se acomodam confortavelmente ao lodo em que se movem.

Artigo de Pedro Pereira Neto