O valor da vida humana, acima de tudo

É incontornável falar nisto hoje. Não só na barbárie que ocorreu na capital francesa, mas também nos inúmeros comentários que se viram pelas redes sociais, muitos deles que, a meu ver – no exercício da minha liberdade de expressão e de opinião -, não fazem qualquer sentido.

Antes de mais, deixar absolutamente claro, sem qualquer sombra de dúvida, que repudio qualquer atentado terrorista, seja onde for. Estes actos hediondos não têm qualquer tipo de justificação ou qualquer tipo de desculpa e os seus executantes devem ser perseguidos e julgados, sem qualquer contemplação.

Dito isto, acho totalmente descabido que se usem estes ataques para criticar muçulmanos em geral. Não se pode usar como se de sinónimos se tratassem as palavras “muçulmano” e “terrorista”. Como muitas vezes e em muitos locais já foi explicado, o Alcorão (“um texto considerado pelos seus seguidores como a palavra literal de Deus (Alá), e pelos ensinamentos e exemplos normativos (a chamada suna, parte do hadith) de Maomé, considerado pelos fiéis como o último profeta de Deus”, citando a Wikipédia) não os incita a assassinarem quem quer que seja. Tal como noutras religiões, incita os fieis a difundir a religião, não a matar por ela. Assim, estes grupos radicais fazem uma interpretação abusiva do seu livro sagrado, para justificar estas suas acções injustificáveis e repugnantes. Portanto, acho que odiar um muçulmano só pelas acções dos grupos radicais é completamente errado.
Até porque a memória das nossas aulas de história na escola não nos deixa esquecer as Cruzadas no século XI, investidas militares cristãs, levadas a cabo pela Igreja Católica contra os palestinianos, com intuito de ocupar, controlar e manter sobre domínio cristão a Terra Santa, bem como a Santa Inquisição, que durante muitos séculos assassinou, muitas vezes pela fogueira em plena praça pública, aqueles que eram contra os dogmas da Igreja Católica.
Em suma, são bastantes – e todos eles repudiantes e condenáveis – os casos em que alguns usaram abusivamente a religião para perpetrar ofensas contra a integridade e dignidade humanas, pelos nossos valores actuais.

Outro assunto que me aborrece ver escrito é culparem os refugiados por estes ataques. Os refugiados – pessoas que fogem da guerra, da morte pelas armas nos seus países, no caso concreto, essencialmente da Síria – não são culpados dos ataques terroristas. Primeiro, porque não está provado que algum deles tenha participado. Depois, porque infelizmente já tivemos atentados terroristas em vários países antes desta crise dos refugiados e não foi isso que os impediu de entrarem na Europa. Podem haver pessoas mal intencionadas e até mesmo terroristas entre os refugiados? Claro que podem. Aliás, até no nosso dia a dia pode haver sempre pessoas mal intencionadas. Mas isso não pode significar deixar milhares morrer pela força das balas de uma guerra da qual não são culpados e que nunca desejaram.

Nós precisamos de mais segurança, com ou sem refugiados. Nós precisamos de que as informações entre agências de segurança sejam cruzadas de forma mais célere e que as autoridades ajam mais depressa. Após o atentado contra o jornal satírico Charlie Hebdo, as autoridades, depois de identificarem os terroristas, disseram que eles estariam numa lista de pessoas consideradas perigosas e com possíveis ligações ao Estado Islâmico. Hoje, a policia identificou também um dos terroristas que assassinou várias pessoas na sala de espectáculos parisiense Bataclan como francês e também já referenciado na tal lista. Não sendo ingénuo ao ponto de achar que seria possível seguir todas as pessoas sobre as quais recaem suspeitas de ligação aos radicais, pergunto para que serve essa lista? Para constatarmos, depois de os crimes cometidos, se os criminosos estavam ou não na mesma?

Os terroristas querem os europeus consumidos pelo medo. Não lhes podemos dar esse gosto, essa vitória. A única coisa que podemos fazer é reforçar a nossa segurança e a nossa vigilância sobre todos aqueles cujas forças de segurança tenham indícios ou provas de envolvimento com organizações criminosas, como é o caso do Estado Islâmico. Todos juntos temos forma de tornar mais rígida a fiscalização de todos aqueles que entram no velho continente, registando, identificando e verificando todos, sem, no entanto, termos a necessidade de deixar de receber aqueles que procuram a sobrevivência à guerra, assim como outros países, nas duas grandes guerras, aceitaram quem fugia da Europa.

O mundo acordou em choque. Acredito que o sentimento de pesar pelas vitimas e seus familiares percorra todo o planeta. Mas amanhã é tempo de ponderação, de toda a sociedade civil mostrar o quão fortes são as convicções e ideais europeus e ajudar os seus respectivos governos a pensar em estratégias para melhorar a segurança para evitar que nos privem de viver a vida como queremos viver. Mas acima de tudo, que garanta a protecção da vida humana, como valor último de qualquer sociedade civilizada.

Crónica de João Cerveira

Este autor escreve em português, logo não adoptou o novo (des)acordo ortográfico de 1990