Os Desafios do Novo Papa – Rafael Coelho

Nos anos sessenta do século XX, foi eleito pelo conclave de cardeais da Igreja Católica um Papa, João XXIII, com idade avançada e cujo poder de decisão e capacidade de inovação era questionada por muitos. No entanto, foi nesse papado que se iniciou o Concílio Vaticano II, de demorou alguns anos a concluir-se, mas que veio a revolucionar por completo o Catecismo e o Direito Canónico da Igreja. A face mais visível dessa revolução teve a ver especialmente com a Eucaristia: deixou de ser rezada a Missa apenas em latim e passou a ser dita na língua local; o sacerdote deixou de estar de costas voltadas para os fiéis, passando a posicionar-se de frente para estes; a Igreja relevou com maior preponderância a participação dos fiéis na Eucaristia e outros serviços religiosos – antes dizia-se que os fiéis “assistiam” e passou a utilizar-se o verbo “participar”; a Igreja deixou de ser vista como um “reinado”, onde o “rei” seria o Papa, para passar a ser um conjunto de Igrejas locais (dioceses), com um único Pastor (Bispo, apenas dependente direta e hierarquicamente do Papa) e com autonomia. Muitas outras alterações menos visíveis foram aprovadas em importantes documentos que ainda hoje não têm plena realização e muitos ainda continuam por esmiuçar, aplicar e aprofundar.

Por esse motivo, é por vezes estranho que se diga que a Igreja está desatualizada ou arcaica.

Talvez haja sim um problema de falta de comunicação. A Igreja nem sempre consegue chegar ao coração das pessoas, através da sua única razão de existência: os valores e ensinamentos de Cristo.

Talvez haja também alguma ignorância de certa comunicação social e de certos comentadores avulso, que tão só desconhecem a doutrina, os valores, as regras, as normas e os dogmas da Igreja. Ler documentos de forma transversal, sem os estudar, sem os aprofundar e sem os compreender aos olhos da Fé, muitas vezes provocam uma distorção na mensagem que se pretende tão simples e tão direta.

Recordo que Jesus foi e é o profeta dos pobres, dos humildes, dos excluídos da sociedade e durante a sua vida pública, sempre afrontou os poderosos, os ricos, os fortes. Essa continua a ser a doutrina da Igreja, pelo menos em termos teóricos.

A história e erros do passado cometidos por esta Igreja de Cristo, não podem ser apagados. É verdade! A sua secular ligação aos poderosos não pode ser esquecida. É verdade! A sua por vezes aparente opulência parece contrastar com todos os valores anunciados. É verdade!

Porém, acredito ainda que existem na Igreja mais homens e mulheres bons do que maus. Acredito também que a Igreja é formada por todos os crentes, incluindo o clero, e que todos esses crentes são homens e mulheres com fraquezas e, por isso, com tendência para o mal. Quando se fala aqui em mal, não se fala apenas de quem faz a guerra, de quem mata, de quem rouba; fala-se de faltas a valores de grande humanidade tais como: o egoísmo, a hipocrisia, o orgulho, a soberba, a inveja, a maledicência, a burla (enganar o outro), a mentira, o esmagamento dos outros na sua vida pessoal ou profissional, a ignorância que se vota ao pobre, ao sem-abrigo, ao desempregado, à pessoa com poucas habilitações, à pessoa com deficiência, à pessoa cuja beleza não lhe foi favorável. Fala-se também na adoração a deuses que não nos oferecem a felicidade eterna, mas apenas o prazer momentâneo ou temporário, como o dinheiro, o poder, a internet, as redes sociais, os bens de grande valor financeiro, entre muitos outros.

Então todas as referidas virtudes da natureza humana não são também elas as ensinadas na doutrina de Jesus? Não é a mensagem de Cristo a síntese de tudo o que conhecemos como bom, mesmo para os homens menos esclarecidos, mesmo para seguidores de outras religiões, mesmo para ateus ou agnósticos?

O grande problema dos nossos dias é o facto de se terem perdido, com o decorrer dos tempos e uma demasiada dose de pseudo racionalidade ou de laicismo, muitos valores fundamentais da humanidade, tais como o respeito, a tolerância, a responsabilidade. Tudo isto se pode resumir em três faltas na constituição do caráter de uma pessoa: falta de educação, falta de formação e falta de civismo. Mas aqui, não falo nestas disciplinas, enquanto “direitos e deveres” do Estado vs Cidadão. Não! Quando falo em educação, falo em respeito, em modos em termos e em postura para connosco próprios e para com os outros. Quando falo em formação, não estou a falar na formação escolar ou profissional, mas sim da deformação do caráter humano que muitos sofrem e dos quais muitas vezes não se apercebem; a falta de formação ou deformação humana conduz à intolerância, ao individualismo e à inveja. Quando falo em civismo, tenho em mente o desrespeito pela identidade e privacidade do outro, ao respeito pelo seu espaço e pelos seus direitos, ao fechar de olhos para tudo aquilo que não queremos ver; em suma, para a hipocrisia.

Mesmo utilizando outras palavras, outras simbologias e sendo outro tempo, não foi isto que Jesus Cristo combateu à mais de dois mil anos?

Apesar de ainda muito atuais, os documentos produzidos no Concílio Vaticano II dos anos 60 podem ainda suportar algumas evoluções que se situam mais ao nível cultural. Essas alterações de mentalidade, nunca atropelando os dogmas da Igreja, podem fazer aproximar muitos crentes da prática religiosa de onde andam arredados (alguns) há muito tempo. Neste lote podemos incluir pessoas para as quais algum entrave ou dificuldade à administração de um Sacramento (Batismo, Comunhão, Casamento ou outro) por parte de algum sacerdote teve lugar; um fiel que foi “forçado ou obrigado” a divorciar-se; um casado que sentiu o chamamento para responder a uma vocação sacerdotal ou vice-versa; ou ainda o sofrimento de um mau exemplo ou uma má experiência pessoal com algum membro do clero; entre outras situações

Muitos falam que a Igreja está em crise. E não está tudo em crise? Que Igreja em crise é esta quando tanto cresce em locais do mundo como a Ásia, África e América Latina? Que tem mais de mil milhões de seguidores ativos em todo o mundo? Uma grande crise é a sociedade que a está a atravessar, principalmente a europeia, que se encontra mergulhada num lodo de falta de valores, olha para o lado e só consegue procurar a cor do dinheiro (ou a falta dele), mas que se esqueceu de procurar o que há de bom dentro do seu coração. Ouvir a voz que fala no silêncio da sua consciência e sabendo, com ela, medir a diferença entre o bem e o mal.

É este mundo extremamente difícil, complexo e de costas voltadas para o divino, que vai receber o novo Papa. O seu desafio maior será o de reconquistar os crentes que não se revêm nesta Igreja, por algum motivo, assim deverá ser a vontade do Pai que abraça o filho pródigo e o acolhe quando o vê regressar, depois de uma vida por caminhos sinuosos.

Crónica de Rafael Coelho
A voz ao Centro