Os fantasmas de 1989

A Esquerda radical está de volta. São cada vez mais os partidos desta estirpe ideológica que chegam ao governo através de coligações sendo o caso mais recente, e até agora o mais polémico, o do SYRYZA. A queda do muro de Berlim em 1989 e o consequente desmembramento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) modificaram fortemente a maneira de pensar da Esquerda e a forma como esta se vê a si própria. A maior parte dos partidos de Esquerda radical não são partidos novos, criados de raiz, mas sim antigos partidos comunistas que se renovaram e alteraram as matrizes ideológicas e organizacionais do partido.

Alguns mantiveram os seus laços saudosistas com o comunismo tradicional ortodoxo, conservando até hoje uma forte identidade marxista-leninista, mas a maioria cortou o cordão umbilical soviético e transformou-se em organizações com uma origem histórica pós-comunista. Posto isto, e dados os bons resultados obtidos na última década, será que os fantasmas do passado continuam a assombrar o eleitorado destes partidos? A resposta é “nim”. Vejamos.

Em primeiro lugar, assume-se como essencial para a compreensão do leitor apresentar uma definição de “Esquerda radical”, um termo relativamente vago e impreciso mas tantas vezes utilizado ao desbarato. Existem várias definições na literatura académica mas porventura a que melhor simplifica a complexidade deste conceito é apresentada por Luke March, um politólogo britânico especialista na temática.

Segundo este autor, os partidos de Esquerda radical caracterizam-se por se definirem como estando à Esquerda da e não apenas na ala Esquerda da social-democracia, considerando muitas vezes que esta última não é suficientemente de Esquerda, ou até mesmo, que não é de Esquerda. Atente-se, porém, que quando falo em social-democracia refiro-me ao seu núcleo puro, distintamente de Esquerda, e não a variantes degeneradas como é o caso do Partido Social-Democrata (PSD), claramente um partido liberal.

Tenho lido e constatado que alguns órgãos de comunicação social confundem sistematicamente Esquerda radical com Extrema-esquerda, sua subcategoria ideológica. As diferenças entre ambas resumem-se essencialmente na atitude face à democracia. Enquanto os partidos de Esquerda radical aceitam a democracia, focando-se em novas formas de participação directa, os partidos de Extrema-esquerda são por natureza muito mais radicais, facto que se traduz numa hostilidade para com a democracia liberal e as suas instituições.

Estes últimos têm ainda uma certa aversão no que toca à realização de compromissos com as forças políticas “burguesas”, onde incluem os partidos social-democratas. Continuam a dar primazia à luta extraparlamentar e à condenação do capitalismo vendo-se, em muitos casos, como actores revolucionários. Utilizando o caso português, o Bloco de Esquerda constitui um bom exemplo do que é um partido de Esquerda radical pós-comunista contrastando com o Partido Comunista Português, claramente de Extrema-esquerda e ligado aos valores soviéticos e ao centralismo democrático como forma de organização interna.

Em que países podemos então encontrar partidos de Esquerda radical com importância significativa no sistema partidário? No Chipre o AKEL (Partido Progressista do Povo Trabalhador do Chipre), na República Checa o KSCM (Partido Comunista da Boémia e da Morávia), na Dinamarca o EL (Aliança Vermelho- Verde) e o SF (Partido do Povo Socialista), na Grécia o KKE (Partido Comunista Grego) e a coligação SYRYZA, na Letónia o LSP (Partido Socialista da Letónia), em Portugal o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda e na Finlândia o VAS (Aliança de Esquerda). Todos eles, com altos e baixos característicos da democracia, obtiveram um sucesso eleitoral considerável entre 2000 e 2014 chegando, inclusive, a participar no governo dos seus respectivos países. No entanto, se por um lado é verdade que na maior parte da Europa Ocidental se verificou um renascimento destes partidos, por outro, também é verdade que nos países de Leste este mesmo desenvolvimento não se registou, pelo menos com tanta intensidade, facto que parece estar ligado ao seu passado socialista comum.

Apesar disso, é notório que a Esquerda radical refloresceu nos últimos anos graças a um conjunto de factores externos que precipitaram e proporcionaram o seu reaparecimento político. Entre eles, destacam-se a grande desconfiança em relação à União Europeia (UE) por parte do eleitorado, um sistema partidário polarizado e a existência de clivagens sociais ligadas a um ambiente socioeconómico depauperado.

É notório que a situação pós-crise 2008 na UE contribuiu em muito para o aumento exponencial destes partidos mas esse factor não é decisivo pois os argumentos utilizados podem facilmente tornar-se em populismo exacerbado e quiçá experimentar novas arenas políticas como a Extrema-direita. Só os partidos mais pragmáticos, unidos e flexíveis são capazes de explorar os sentimentos das pessoas eficazmente de forma a chegar ao governo. O SYRYZA fê-lo e os resultados estão à vista.

Termino esta crónica com o seguinte pensamento. A democracia oferece a oportunidade de vários partidos exercerem o poder expressando, desse modo, as preferências dos cidadãos. As crises económicas do capitalismo são cíclicas e constituem uma excelente plataforma para a criação e renovação de movimentos políticos. O problema não está na quantidade de partidos e movimentos que nascem dessa conjuntura mas sim na qualidade das suas organizações, dos seus líderes e mais importante na fiabilidade e segurança que o eleitorado pode retirar deles.

Peixe miúdo tem memória curta, mas basta recuarmos vinte cinco anos atrás para percebermos no que se pode tornar um ideal corrompido e uma visão deturpada da sociedade. Os fantasmas não existem. A História é sempre professora de quem quiser aprender e a Esquerda, mais do que nunca, deve estar à altura dos seus compromissos e retirar as lições devidas do passado.