Os segredos privados também são do interesse público

O meu segredo é ter entrado na passada edição da “Casa dos Segredos”, isto para quem não assistiu ao programa ou preferiu, durante os diretos de Domingo à noite com a Teresa G., mudar de Canal para um que talvez não transmitisse cenas da vida conjugal entre pessoas que pouco tempo antes nem se conheciam, mas ainda assim conquistava audiências juntando na mesma casa, aos concorrentes que sabiam cantar, outros que melhor seria os terem trancado numa casa sem câmaras nem microfones para não serem ouvidos cá fora.

Desci à velocidade de um relâmpago, da camioneta de que me trouxe de Bragança, por aí abaixo em direção em Lisboa, onde esperava que a minha vida sofresse uma reviravolta maior do que se, na véspera, me tivessem dito que devido a um erro de casting eu afinal não entrava, depois de ter largado o emprego e dito à minha ex-namorada que ela estava livre que nem um passarinho para procurar conforto nos braços de outro rapaz, se acaso a deprimissem os boatos acerca da nossa relação de que viria a tomar conhecimento através das revistas da chamada imprensa cor-de-rosa.

Depois, passei mais de quarenta e oito horas em cárcere privado de luxo, confinado ao espaço de um pequeno quarto de hotel, contíguo a uma espécie de arrecadação de onde, a meio da noite, devia sair um carrinho empurrado por duas ou três pessoas que só deixava de se ouvir, a par do ruído das vozes, quando com elas desaparecia ao fundo do corredor.

Na ansiedade em que eu vivia, por aqueles dias, mal podia esperar para ter a certeza de que era verdade que haviam de olhar-me com admiração os funcionários do hotel que, sem perceber por que é que eu passava por eles sem lhes dirigir a palavra, olhavam para mim indignados. Seguindo as instruções dos produtores do programa, eu estava proibido de revelar-lhes ou dar a entender que era um dos elementos que iam integrar o elenco da casa mais famosa e vigiada do país, como se o segredo da minha participação fosse o deles, que importava não fazer chegar aos ouvidos de ninguém até ao último segundo, a qualquer preço.

Para a apresentação dos concorrentes do direto televisivo, esta preparou uma grandiosa festa de luz e de som, digna de uma cerimónia em Hollywood para a entrega dos Óscares na categoria de “Melhores efeitos especiais”.

A apresentadora era uma figura pública tão conhecida que, se fosse de sua vontade, teria dificuldades em arranjar um segredo para entrar no programa, pois era frequente a comunicação social devassar-lhe a vida pondo todos os factos a descoberto.

Trajava um vestido de noite vermelho como o de uma princesa que suspirava de saudade pelo regresso a uma era que em Portugal tinha terminado de forma trágica no Terreiro do Paço após durante quase oito séculos terem reinado reis e rainhas que, como se veio a saber, nem sempre eram amados pelo povo.

Diante de uma plateia ansiosa por conhecer os novos concorrentes da casa, por cada um de nós que ela anunciava, um coro de aplausos era o melhor reconhecimento que podia obter pelo profissionalismo de que dava mostras.

Para em poucas palavras conseguir resumir a personalidade de cada um, lendo os apontamentos que trazia de casa, mencionava-lhe menos as qualidades do que os defeitos, porque aquelas, estando à vista de todos quando apareciam em elegantes fatiotas que os faziam parecer príncipes ou princesas, resumiam-se na maioria dos casos ao facto de terem uma boa apresentação.

Entrei na casa distribuindo sorrisos sentindo-me como se fosse uma estrela em ascensão, ladeado por uma mulher de cabelos louros da cor do sol, mas as primeiras impressões podiam ser melhores. Fomos os últimos a entrar e a casa estava cheia. Respirava-se lá dentro uma atmosfera demasiadamente quente para o meu gosto, e aos primeiros concorrentes que vieram ter connosco, emocionados por estarem a viver um conto de fadas com figuras da realeza à mistura, só me lembrei de responder que provavelmente estaríamos no exterior do castelo porque no interior daqueles que eu conhecia, construídos com grossas paredes de pedra, o ar era mais húmido e fresco, sobretudo à noite.

Apesar de ter entrado sozinho, fiz rapidamente amizade com uma rapariga que, no dia seguinte sem maquilhagem, parecia ter o dobro da minha idade. Era natural de uma aldeia perto de Lafões, na região de Viseu, e sonhava tornar-se conhecida para com o dinheiro que ganhasse viajar pelo mundo que para ela, até ter ido para a casa, se circunscrevia aos concelhos limítrofes.

Passámos a dormir juntos ao segundo dia, como se fossemos tão íntimos que, tendo adivinhado o lado que ela preferia ocupar na cama, soubesse de antemão o que devia fazer para mantê-la acordada.

Como éramos em maior número na casa, coube a um rapaz a primeira expulsão da casa ao cabo da primeira semana. Tinha sido votado para sair por oito nas nove competidoras do sexo feminino que unidas numa demonstração de força perante os homens, decidiram correr com o candidato que menos sombra podia fazer-lhes frente porque desde cedo arranjou namorada e raramente passou a ser visto perto delas.

Talvez tenha sido a consequência de uma embirração que começou na noite anterior às nomeações. Enquanto decorria o jantar, ainda tocado pelo champanhe que serviram na noite de estreia, o sujeito envolveu-se numa discussão com outro rapaz como se fosse para decidirem quem é que ia pagar a fatura das bebidas que vieram para a mesa, assim como se fosse um desentendimento por causa de um jogo de futebol à 4ª jornada achando que era já decisivo para atribuir o título.

Quem assistiu, ficou a pensar que ele seria reincidente naquele género de comportamento por causa da cicatriz antiga que tinha no queixo, certamente desde o tempo em que era um rapaz e não tinha desenvolvido a musculatura ou nem sequer lhe teriam tocado.

Ao conluio feminino, deve ter chamado “golpe traiçoeiro por parte das mulheres”, quem assistiu através da televisão em casa ao direto de Terça-feira, no qual houve as nomeações, que redundou na união dos rapazes, lestos em formar um grupo à laia de milícia que os alertasse contra quem pretendesse expulsá-los da casa.

Elegeram um chefe, delinearam uma estratégia, e mesmo sem redigirem estatutos cada um estava consciente de que agindo em conformidade com a norma que poriam em primeiro lugar, deveriam antes de mais designar para sair as mulheres e depois os homens que desejassem vê-las regressar, por causa das saudades das namoradas que tinham deixado lá fora.

A partir desse dia, houve uma cisão no grupo tendo-se formado duas fações cujos elementos conversando entre si pareciam esperar, uns dos outros, o desagravo dos seus pecados a fim de não serem penalizados na votação do público. Combinando uma estratégia de jogo que visava protege-los, conversavam demoradamente sobre os defeitos daqueles que designaram como inimigos, como se tentassem perceber o que tinha originado não gostarem deles e dessa forma quisessem perdoá-los.

Em vão, dedicavam menos tempo a tentar adivinhar os segredos uns dos outros do que a cumprir missões ordenadas através da Voz, uma espécie de autoridade no interior da casa, que ninguém ousava desrespeitar com a naturalidade com que o faziam em relação às mais salutares regras de convivência, para que lá fora ninguém pensasse que estavam habituados a fazê-lo antes de serem chamados lá para dentro.

E assim, foram mais os dias que todos passaram de cara fechada como um livro de 700 páginas que nunca nenhum fora propenso a ler, do que a divertirem-se, rindo da ingenuidade de um dia terem chegado a pensar que todos podiam sair dali amigos ou sem razões de queixa como tinham à entrada.

Não causou estranheza, por isso, que no primeiro dia de votações para sair, tenham sido tantos os telefonemas para os nomeados que se tivesse ocorrido um bloqueio de linhas a nível nacional ninguém teria dúvidas em apontar como sendo essa a causa.

Saí eu mas podia ter saído o outro, porque a diferença percentual a favor dele foi pequena, e fui recebido pela apresentadora sem pompa nem circunstância, nem pena de ter largado a rapariga que dentro da casa afinal só se aproximou de mim para disfarçar que era lésbica.

Hoje em dia sou famoso e apresento-me, a convite, em discotecas onde dantes só parava à porta para imaginar como seria estar em plena pista de dança onde dançavam raparigas seminuas que se exibiam como troféus de caça à espera de serem conquistados, e matulões a quem, para me derrubar, bastaria deixar-me cair em cima um braço ao peso de inúmeras e indecifráveis tatuagens que poderiam ter qualquer significado menos o de que ficaram satisfeitos vendo-me olhar para elas com ar de guloso.

Prometi à Teresa G. e cumpri, não faltar às galas de Domingo e em casa, assistindo aos resumos pela televisão, não podia ter ficado mais contente, pois dos concorrentes de que não gostava, para não ser obrigado agora a ouvir-lhes a voz bastava levantar-me e tirar o som ao aparelho ou simplesmente mudá-lo de canal para o tal que dava as canções ao Domingo e na Segunda-feira não me importava de perder tempo a ver.