Regresso ao Futuro (Agora Presente)

Regresso ao Futuro é talvez uma das trilogias mais populares e acessíveis no que toca a viagens no tempo, mas depois de 30 anos o próprio filme torna-se uma viagem ao passado, onde até o futuro de 2015, agora presente, é um testemunho claro da mentalidade dos anos 80. Hoje, no Ideias e Opiniões, voltamos atrás no tempo, dentro do possível, para analisar a trilogia de Robert Zemeckis, mas também a temática das viagens temporais e como o “Regresso ao Futuro” acertou ou, se enganou, nas suas expectativas para 2015.

Viagens no tempo não são propriamente desconhecidas do panorama de Hollywood, mas normalmente servem como encadeamento para narrativas mais sombrias. Quem não se lembra de A Máquina do Tempo (2002), Relatório Minoritário (2002), Déjà Vu (2006), X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido (2014) ou até Interstellar (2014), na sua base cientifica particular. Neste misto que engloba a temática, poucos são os filmes que efectivamente tornam este tipo de viagens surreais em conteúdo humorístico ou até parte da cultura popular.  Regresso ao Futuro é por isso uma excepção, e embora tenha os seus momentos sombrios e de reflexão sobre o tema, torna-o leve, divertido e para toda a família. É também um testemunho fundamental para perceber os anos 80, e melhor ainda, para compreender as expectativas e a idealização do futuro, que claramente nutrem da inspiração do presente. Vários artigos têm destacado nos últimos meses o trabalho de Jean-Marc Côté e outros ilustradores da Exposição Universal de Paris em 1900, que imaginavam um mundo cheio de invenções extraordinárias para o ano 2000. A passagem do milénio parecia quase tão longínqua como 1985 para 2015, como é possível constar nas imagens em baixo.

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As inúmeras ilustrações não só apresentam corridas com carapaus e críquete subaquático como ainda aparelhos que implantam conhecimento na cabeça dos jovens através da trituração de livros num aparelho puxado à manivela (e não seria estudar para os exames tão fácil?). Estas ilustrações têm ainda maravilhosas gravuras com bombeiros que apagam incêndios em prédios altos com a ajuda de asas e guerras entre balões de ar quente. Parece tudo tirado de um livro de Julio Verne, o que não é de admirar, sendo o autor de 20 Mil Léguas Submarinas francês e uma figura incontornável da literatura. Por mais infeliz que seja, não era possível participar em corridas de carapaus em 2000, e mesmo passado 15 anos tal ainda não foi implementado, da mesma forma que ainda não existem hoverboards, autoestradas nos céus ou ténis da Nike que se apertam sozinhos, pelo menos em quantidade industrial que possa ser comprado por qualquer McFly.

Raramente o futuro imaginado se torna realidade, e cada reencarnação de Hollywood parece ter a limitação do presente, especialmente aqueles que tentam simular o progresso da civilização. Metropolis (1927) apresenta uma luta entre classes e uma cidade mecanizada no ano de 2027. Embora o filme seja futurista é bem evidente que as temáticas se aproximam da realidade da altura, o movimento operário e a mecanização da industria.

Num ambiente mais noir está Blade Runner (1982) com um ano de 2019 marcado por uma certa hegemonia oriental, pelas mega corporações e pela dificuldade em distinguir o humano do android ou neste caso, replicant.  Já noutros futuros ainda mais negros, está a saga de Exterminador Implacável (1985-) que prevê o Dia do Juízo Final para o ano de 1997, e que curiosamente surge quando se começa a debater com mais afinco a questão da inteligência artificial e a ascensão do computador pessoal. É a era dos cyborgs a que se junta Robocop (1987), num futuro não estipulado, com o questionamento sobre o verdadeiros bens da tecnologia para a sociedade em contraste com o sacrifício do individuo preso a um corpo estranho que embora lhe dê vantagens afasta-o da sua própria humanidade.

A história de Regresso ao Futuro não é excessivamente complicada, até porque um bom filme de comédia para a família não se pode conter em complicações morais ou filosóficas em demasia. Marty McFly (Michael J. Fox) é um rapaz normal, para 1985, com uma família bastante disfuncional, com um pai submisso à figura de Biff, um antigo colega de escola e bully, que de forma parasítica atormenta toda a família do protagonista. Marty tem no entanto uma relação de amizade improvável com Doctor Emmett Brown (Christopher Lloyd) que está a preparar uma maquina do tempo original, utilizando um Delorean DMC-12, um carro que em 2015 só tem relevância aparente por causa do filme.

As aventuras de Marty McFly vão-se somando à medida que a problemática da viagem no tempo se complica. E muitos de nós estamos familiarizados com elas devido ao seu impacto na cultura popular e ás mais variadas referências cross media. Em Parte 1, Marty viaja até 1955, e interfere involuntariamente com o primeiro encontro dos seus pais, criando uma realidade que lentamente o vai apagando da existência. Para evitar isso, tem de motivar o seu pai a ganhar força para conhecer a sua mãe, e combater o Biff adolescente, o principal problema que afasta os seus progenitores.

Já em Parte 2, Marty viaja com Emmett Brown até 2015, na tentativa de salvar o seu filho de cometer um crime que vai desgraçar a família, compra um almanaque desportivo que acaba por cair nas mãos de um velho Biff, que usa esse mesmo almanaque para, através do Delorean, entregá-lo ao seu eu mais novo em 1955, de forma a que ele possa prever, e obviamente ganhar, todas as apostas desportivas daí em diante. Este facto cria outro universo alternativo onde Biff governa uma sombria Hill Valley em 1985. McFly só pode resolver este problema voltando a 1955, de forma a roubar, e destruir, o Almanaque e restabelecer o futuro, no entanto, tem também de se evitar a si próprio, uma vez que a sua outra versão está empenhada em juntar os seus pais.

Parte 3 leva Marty, preso por breves momentos em 1955, a 1885 de forma a salvar Emmett Brown da morte às mãos do tetravô de Biff, o pistoleiro Buford. Um filme mais romântico que tenta estabelecer um final feliz para ambas as personagens e acaba por perder ritmo em algumas ocasiões. Embora seja o filme mais fraco da trilogia não deixa de ter os seus momentos altos e um final digno para todos os intervenientes.

Numa trilogia tão consistente em termos de qualidade não é impressionante perceber porque continua tão presente. Além de tudo o que já foi dito, utiliza uma comédia bastante bem escrita, com alusões que faziam sentido em 1985-1990, e que ainda hoje continuam bem actuais. Desde a icónica cena onde Marty se apresenta como Darth Vader, até à incrível alusão a Clint Eastwood, Regresso ao Futuro estava longe de adivinhar outros grandes sucessos do cinema, mas as referências ecoam, não só porque serviram de inspiração ao filme, mas por terem tido a sorte de neste futuro, agora presente, continuarem a fazer sentido e terem o seu espaço na cultura popular. A trilogia tentou adivinhar o futuro e pela mais bela das ironias tornou-se intemporal!

A nossa reacção ao 2015 factual
A nossa reacção ao 2015 factual

Mas será que Regresso ao Futuro acertou na sua viagem a 2015? Iríamos mais longe, embora não tenha acertado em tudo, claramente influenciou uma tentativa nossa de fazer cumprir algumas invenções tecnológicas, que possivelmente sem esta trilogia não estaríamos sequer a pensar concretizar. Ténis da NIKE que se apertam sozinhos foram criados e entregues a Michael J. Fox no dia em que McFly chegaria em 2015. Estarão prontos para o mercado? Talvez, mas não será certamente para todas as carteiras. Não há hoverboards à escala industrial, mas graças ao filme estão a ser desenvolvidos, embora não utilizem a ciência que certamente é teorizada no filme. Em vez disso, usam uma chão magnético para funcionarem, o que levaria o mundo a forrar todos os pavimentos com uma espécie de íman onde quer que houvesse fãs da trilogia. O orçamento de muitas autarquias dispararia com certeza!

E enquanto no chão estaríamos magnetizados, as estradas seriam uma parvoíce do século passado com a criação de verdadeiras autoestradas nas nuvens. É talvez uma das previsões mais surreais de Regresso ao Futuro Parte 2. Não conseguimos ainda tal feito, mas já conseguimos pôr os carros a andar sozinhos. Se pensarmos bem nesta previsão teríamos que aliar uma licença de condução a uma licença de piloto, imaginem o preço e os acidentes com condutores bêbados?! Ou então aquele senhor que se perdeu dentro de uma nuvem?

Já a mecanização de algumas das tarefas do dia a dia estariam a cargo de robôs. Uma coisa é certa, Regresso ao Futuro acerta no que toca a drones, mas ainda não vi nenhum a passear um cão. Pouco acertou também noutro tipo de equipamento. No alternativo 2015, pouco há que indique a ascensão da industria de videojogos ou a presença de smartphones que levariam Hill Valley a ter menos pessoas na rua e muitas outras a olhar incessantemente para um pequeno aparelho nas suas mãos.

O guarda-roupa é talvez a maior falha depois das autoestradas nas nuvens. Nenhum se adequa ainda ao tamanho do utilizador. É verdade, ainda há uns tempos tentei falar com uma camisola nova mas ela nem amavelmente aumentou as suas mangas. Em compensação podemos dizer que o nosso 2015 tem um pouco mais de bom gosto em termos de moda, e felizmente ainda não vi ninguém com um chapéu multi-colorido.

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Não, ainda ninguém viu pessoas assim vestidas, nem na Moda Lisboa

Mas se há coisas a dizer sobre o 2015 alternativo pensemos que nem mesmo no passado, Regresso ao Futuro, consegue manter-se fiel à realidade. A guitarra que Marty toca no fim da festa da Part 1 em 1955 é uma Gibson ES-345, que só seria produzida e vendida quatro anos depois. Mas há ainda maneiras melhores de arruinar a infância e adolescência dos leitores. E porquê? Porque Parte 2 sofre de um erro factual que pouca gente detectou e que tinha de certo modo mudado tudo de maneira devastadora.

Quando a versão idosa de Biff viaja no tempo com o Almanaque Desportivo e o entrega à sua versão mais nova não seria a partir daí capaz de voltar à versão de 2015 que deixou, porque a mudança no tempo já estava feita, da mesma forma que Marty e Emmett Brown só conseguiam voltar ao 1985 onde Biff governa Hill Valley. O resultado seria os protagonistas presos em 2015 durante bastante tempo e sem DeLorean. O facto do velho Biff voltar sem qualquer problema a 2015 deixando o DeLorean onde estava quebra as regras do jogo. Algumas teorias têm aparecido, nomeadamente, que embora a linha do tempo tenha mudado Marty e Emmett Brown estavam na rua e não notaram as mudanças entrando no carro de seguida e regressando a 1985 sem ser afectados de nenhuma maneira. Algumas cenas cortadas comprovam este facto, pois velho Biff desaparece assim que volta a 2015, nomeadamente porque na versão decadente de 1985 foi morto pela mãe de Marty. Mas não teria Biff desaparecido no momento exacto em que entregou o Almanaque ao jovem Biff, impossibilitando assim uma viagem de volta a 2015? Esta confusão deve-se, ou a uma falha de continuidade, ou a um mau corte do filme que não deixa em evidência alguns pormenores básicos. Não lhe tira, no entanto, a magia!

Mas o mais surpreendente sobre Regresso ao Futuro fica para o final! Para quem anseia por uma Parte 4, pode encontrá-la sem ter de esperar por um filme. Sim, é verdade! Ela existe, mas passou despercebida para alguns dos menos atentos. Back to the Future: The Game foi desenvolvido pela TellTale, uma empresa de videojogos dedicada a aventuras gráficas ou historias interactivas e que conseguiu juntar alguns do actores do elenco original, nomeadamente Christopher Lloyd e Michael J. Fox, que embora não tenha participado em todos os episódios desta mini-série deu voz a McFly em alguns momentos. O resultado é um jogo que leva os protagonistas a 1931, e mais uma vez, as referências são incontáveis e muitos fãs da série vão sentir-se em casa, numa Hill Valley marcada pelos gansgters e por uma versão adolescente de Emmett Brown.

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É a Parte 4 em videojogo, mas se calhar ficou melhor assim

Regresso ao Futuro é intemporal, a sua longevidade vai muito além de 2015, e continuará sem duvida na mente da cultura popular. Não acertou em todas as suas previsões mas continua a ser um testemunho claro da mentalidade dos anos 80 em relação ao futuro. O 2015 parecia longínquo mas com um pé vincado naquelas era de ouro que muitos recordam com agrado. É também um 2015 idealizado e muito mais interessante ao ponto de esperarmos que seja realidade numa outra linha de tempo, mais colorida e avançada, num mundo menos assombrado pelos problemas com que se depara. Num 2015 imaginário que esperaríamos por uns momentos que estivesse certo. Caso para dizer, bem ao jeito de Casablanca, que Sempre teremos Hill Valley…

Volto para o próximo mês com mais cinema…