Rita, anda ver o verão! – Cap.2

Sem poder dedicar-lhe o tempo necessário para mostrar que estava irritada, Rita desferiu na gata um olhar feroz, perante o qual esta só não entrou em pânico porque se acostumara a vê-lo na expressão dos cães enfurecidos da vizinhança quando se punha a espreitar a rua por de trás do vidro da janela do quarto da dona. Contudo, não fosse Rita mudar de ideias, a bichana encolheu o rabo e esgueirou-se aflita para dentro do quarto de Renata, onde esta já não estava porque se levantara cedo para ir trabalhar.

Era onde funcionara o primitivo escritório do pai, a divisão da casa que albergava agora a irmã mais velha de Rita, que era a única das três que já trabalhava e contribuía ativamente para o sustento da casa, com um contributo financeiro aos pais no final do mês. Tornara-se aos vinte e três anos, numa jovem responsável e determinada. Além dela lá em casa, havia ainda Roberta, de quinze, que para dormir se aconchegava à noite no sofá que, por ser da mesma cor, parecia ter sido feito a partir dos restos de madeira dos móveis da sala onde viam televisão.

Praticante assídua de desporto, Roberta tinha dado um pulo no último ano que a fizera deixar para trás Rita, a mais parecida, em peso e altura, com a mãe, que era uma mulher robusta mas de aspeto frágil. E só os pais, que continuavam a tratá-la da forma como faziam há cinco anos, é que não reparavam que estava a crescer e o seu corpo a dar forma à mulher em que interiormente já se tinha transformado.

Segundo o caminho delineado numa reunião geral de família na qual não tinha sido chamada a participado, Roberta haveria de seguir o exemplo das irmãs, ou seja, dali a seis meses, o de Rita, quando terminasse o Ensino Básico e ingressasse no Secundário, para prosseguir os estudos antes de enveredar pela Faculdade e mais tarde, o de Renata, mal acabasse o curso que viesse a tirar e ingressasse no competitivo mercado de trabalho, antes de arranjar um namorado, casar e orientar a sua vida noutro lado.

A cozinha da casa, que era pequena como uma caixa de sapatos desmanchada dos lados para dar a ilusão de que era ampla, estava completamente pintada de branco, mas no teto começavam a sobressair, da pintura anterior, laivos de tinta azul que lembravam o céu eram como que uma esperança de bom tempo que havia para lá do manto de nuvens que não deixavam ver o sol.

A mãe de Rita incumbia-lhe tarefas diárias e para não esquecê-las, postava-lhas de maneira a vê-las mal entrava na cozinha, num sem-número de recados colados à porta do frigorífico, como se fossem páginas arrancadas de uma agenda que não tinha.

Como habitualmente, Rita leu o primeiro e reconheceu, na caligrafia irrepreensível da mãe, as recomendações iguais às da véspera, as quais já haviam copiadas das do dia anterior. E até achou graça a que uma das folhas, do tamanho A cinco dos seus cadernos pautados, estivesse presa, em cima, à miniatura magnetizada da famosa Torre Eiffel, e, em baixo, a uma imagem que reproduzia a não menos conhecida Catedral da cidade alemã de Colónia, celebrizada por não ter sucumbido a uma guerra que deixou um rasto de destruição no mundo, pois por estes dias em que só se fala de economia, não supunha que alguma coisa pudesse unir aqueles dois países a não ser a ambição de dominarem por via dos euros o velho continente, e muito menos uma folha com rabiscos da mãe, que só aumentavam de tamanho à medida da urgência que esta tivesse em que ela os lesse.

O conteúdo dos bilhetes não deixava dúvidas. Consistia num rol de recomendações que enchiam o papel de alto a baixo, escritos em letra maiúscula de forma a não sobrar espaço nem para ela nem a filha, poderem anotar as medidas alternativas ao incumprimento das tarefas consideradas mais importantes.

Rita queixava-se deste tratamento diferenciado em relação às irmãs. Era o que a fazia sentir-se, amiudadas vezes, na pele da filha única que não era, simplesmente porque estes recados sempre se destinavam a ela e nunca a elas.

À cabeça, a mãe desejava-lhe um bom dia. Depois, pedia-lhe que não saísse de casa em jejum.

Roberta que, tão cedo, não fazia companhia à irmã, pois entrava nas aulas à tarde, era a única pessoa da família a estar em casa àquela hora. Ainda enrolada no edredão que lhe mantinha o corpo quente como se estivesse acompanhada, dormia com a cabeça enroscada na almofada que lhe permitia escutar ao longe, como se estivesse a uma distância superior à que se encontrava, o barulho que vinha da cozinha provocado por Rita, que remexia em pratos e copos à procura do mais pequeno, onde coubesse a escassa porção de leite que costumava beber. E ia bebericar da chávena o primeiro gole de café que tirara da máquina, quando ouviu protestos vindos do quarto dela, enfurecida por ter despertado a meio de um sonho no qual era uma gata siamesa, como Cleópatra, que além de adorar aninhar-se nas pernas das outras pessoas, corria a deitar-se sobre as mantas e cobertores para se aquecer de noite à custa do calor que emanava dos corpos que se escondiam debaixo delas a dormir.

Ao ouvi-la zangada, Rita assustou-se e entornou na toalha o conteúdo de uma chávena que equilibrava com artes circenses sobre o pires do serviço de porcelana predileto da mãe. Com medo de que a mancha alastrasse a uma parte do tecido que ela e o pai pudessem notar, a fim de não ser repreendida, apressou-se a limpá-la e a enxugá-la com guardanapos de papel, mas o resultado não foi satisfatório. Consequência de ser tão desastrada, derrubou de seguida o açucareiro de vidro e a toalha, outrora limpa, ficou a precisar urgentemente de ser lavada e estendida ao sol antes de voltar a ser posta na mesa.

Olhando para as horas, viu-se-lhe um ar preocupado, mas simultaneamente sentiu-se aliviada por, dai até sair de casa, já não lhe restar muito tempo para vir a provocar estragos maiores. Sacudiu com a mão as migalhas de bolacha de um pacote que estava aberto e viu parte delas ir parar ao chão, aumentando exponencialmente o seu tormento.

Da lata do chocolate em pó para diluir no leite, retirou duas colheres de sobremesa cheias que dariam para fazer um bolo que levasse uma dúzia de ovos e meio quilo de farinha, e despejou-as de seguida no copo da liquidificadora, onde já estava o leite que tirar de um copo que servira de medida. Apressou-se a premir o botão que acionava o pequenino motor do aparelho que estava na base, e ficou a ver o efeito do par de lâminas submersas que, mesmo rodopiando na potência máxima, não conseguiam desfazer o granulado de cacau, que teimava em subir à superfície, sempre que levantava o dedo para verificar se a bebida já estava a seu gosto. Reparou que no silêncio da casa, o zumbido do aparelho elétrico assemelhava-se ao de um enxame de mil laboriosas abelhas que roçassem as asas, em uníssono.

Para acompanhar o batido, que sorveu de uma assentada, Rita separou duas fatias finas de uma embalagem de pão de forma e uniu-as preenchendo o espaço entre elas com fatias de fiambre em quantidade suficiente para encher de orgulho a mãe se pudesse vê-la comer tão bem, e um pedaço de manteiga que nem perdeu tempo a espalhar, para, no final, o sabor a sal que era tão do seu agrado, concentrar-se na derradeira dentada que haveria de dar já na rua e em passo de corrida a caminho da escola, para não chegar atrasada à primeira hora.

(Continua na próxima semana)