São Silvestre: A Última Corrida de uma Vida…

— Mas onde raio estão a porcaria das sapatilhas, caramba?! — perguntava David, enquanto vasculhava debaixo da cama.

— As…? — respondeu a sua mulher.

David desistiu de procurar debaixo da cama, apressando-se a sair debaixo da mesma, recuando aos poucos, ao mesmo tempo que respondia:

— As sapatilhas, mulher! O raio das sapatilhas! Aquelas que eram do meu pai, e que eu tenho a certeza que as tinha guardado algures aqui, no quarto.

A mulher de David, que estava à entrada do quarto, de mãos na cintura, riu-se e proferiu:

— Ah, mas tu vais dançar ballet, é?

David parou de recuar, suspirou, e contendo-se para não perder a paciência, disse:

— Cristina… Importas-te de não gozares com a situação? Sabes bem do que estou a falar, e melhor ainda: sabes bem o quão importantes são aquelas sapatilhas para mim. Por favor, ajuda-me a encontrá-las antes que eu perca a paciência e cometa uma loucura…

A mulher de David parou de sorrir. Colocou um ar sério, como se estivesse prestes a receber uma má notícia, e disse:

— David… Os ténis que estás à procura estão no teu saco. Eu pu-los lá esta manhã, para que não te esquecesses deles. Agora vê lá se te vais despachar que eu estou a morrer de sono e queria mesmo ir dormir que é tarde.

David sentou-se no chão do quarto, ao lado da cama, olhou para a mulher e sorriu. Ele sabia que, nos últimos dias, tinha-se tornado numa pessoa simplesmente insuportável, mas era mais forte do que ele e não se conseguia conter. Sempre que andava ansioso, nervoso ou com algum tipo de problema, ele tinha consciência que se tornava na pior pessoa do mundo. E, habitualmente, era a mulher dele, Cristina, que sofria mais com o seu temporário mau-feitio.

David levantou-se, aproximou-se lentamente da mulher, que ainda se encontrava junto à porta do quarto, na mesma posição, mas com um ar sério que até a David deixava assustado, abraçou-a gentilmente, e sussurrou-lhe ao ouvido:

— Desculpa, querida… Eu sei que, nos últimos tempos, tenho sido a pior besta do universo, mas eu prometo que vou melhorar… Depois do dia de amanhã, eu volto a ser aquilo que era… Eu prometo.

— Eu sei, querido… Eu sei que o dia de amanhã é muito importante para ti. E é só por isso que eu ainda não te pus as malas à porta, para ires à tua vida… Porque, tens de reconhecer: tu tens sido uma verdadeira besta! — Beijou a face do seu marido, e foi deitar-se na cama, pronta para ir dormir. — Agora mexe esse rabo e vem enfiar-te debaixo das mantas comigo, pá!

— Vou já… Deixa-me só ir confirmar se tenho tudo arrumado e pronto para amanhã. — disse David, pegando de seguida no saco de desporto que estava em cima de uma velha cadeira castanha ao canto do quarto, e que tinha sido uma prenda do seu falecido pai e que era, por essa mesma razão, uma das poucas lembranças que tinha dele.

Vasculhou dentro do saco, e lá encontrou as sapatilhas que anteriormente procurara debaixo da cama. As sapatilhas tinham um significado importante para David, porque tinham sido do seu pai. E ele prometera-lhe que um dia ele iria participar numa grande prova com elas calçadas. E esse dia estava prestes a chegar…

Voltou a colocar as sapatilhas dentro do saco de desporto e sorriu para a sua mulher — que lhe retribuiu o sorriso, em género de convite para ele se juntar a ela debaixo das mantas. David apressou-se a aceitar o convite.

— Morzinho… — começou por dizer a sua mulher — que achas de… Hum… Sabes, nos divertirmos um pouco… Sabes… em género de recompensa pela forma como me tens tratado nos últimos tempos… — continuou, colocando uma perna em cima das pernas de David.

Mas David não se mostrou tentado. Antes pelo contrário. Afastou a perna da mulher e disse:

— Sabes bem que não posso… Tenho uma prova importante amanhã. Eu tenho de estar bem fisicamente.

— Oh, era só um bocadinho… Só para…

— Não! — interrompeu David, mostrando-se aborrecido. — Sabes bem a importância que tem a corrida de São Silvestre para mim! Sabes bem que o meu pai sempre sonhou em fazê-la comigo, mas a porcaria do destino assim não quis. Mas eu vou cumprir a minha parte. Eu vou participar naquela corrida e vou vencê-la! Vou vencê-la em memória dele! Vai ser a minha homenagem e uma espécie de agradecimento por tudo o que ele fez por mim durante a sua estadia neste mundo. Ele merece! Ele… — David foi interrompido pelo barulho ensurdecedor da sua esposa a ressonar, que entretanto se tinha deixado dormir sem ele dar por isso.

David virou-se para o lado, puxou as mantas até ao pescoço e fechou os olhos.

“Amanhã será um grande dia, pai…” pensou, segundos antes de adormecer.

***

David acordou sobressaltado com a música Eye Of a Tiger do filme Rocky a entrar-lhe pelos ouvidos adentro. Se o raio da música tinha o propósito de motivar, naquele preciso momento, pareceu a David que a música tinha antes o propósito de o deixar ainda mais enervado — como se o facto de ele estar a dormir tão bem e ser acordado tão bruscamente, não fosse já motivo suficiente para enervar qualquer pessoa.

Esforçou-se ao máximo para desligar o despertador do telemóvel sem o mandar ao chão, e lá saiu da cama com o pensamento de que tinha de mudar o toque do despertador do telemóvel o mais rápido possível, para o bem do próprio telemóvel assim como da sua própria sanidade mental. Ficou por alguns momentos atordoado e sem saber bem o que fazer, até que se fez luz na sua cabeça — aquele era o dia em que ele iria participar na corrida de São Silvestre. E mais do que simplesmente participar, ele iria vencer a corrida e dedicar a vitória ao seu falecido pai.

Despachou-se o mais rapidamente possível e antes de sair de casa pronto para o grande dia que o esperava, voltou ao quarto para dar um beijo à mulher, que lhe respondeu com um simples grunhir, resmungando por ele a acordar.

— Hoje é o grande dia, amor! Deseja-me sorte! — disse, enquanto abandonava o quarto. Se a sua mulher respondeu, ele já não ouviu, pois a sua cabeça já estava noutro universo — o universo da corrida de São Silvestre.

De carro eram apenas 20 minutos até ao local onde se iria realizar a prova. Ainda faltava mais de uma hora para o realizar da corrida, mas David queria chegar cedo. Sentou-se no interior do carro e ficou alguns momentos a rever todos os passos que deu até chegar ali, para se certificar de que não se tinha esquecido de nada importante. Ligou a ignição, suspirou e lá seguiu viagem.

Bastaram 5 minutos. Bastaram apenas 5 minutos para que os problemas começassem a surgir. O carro, de um momento para o outro, parou. Fumo preto saía do capô, como se o motor estivesse a arder de uma forma desmesurada. Apesar do imprevisto, David não se enervou. Tinha bastante tempo para chegar ao local da prova, por isso bastava-lhe regressar a casa a pé, pegar na bicicleta e seguir viagem. Assim o pensou, assim o fez, e 10 minutos mais tarde já estava ele a pedalar em grande estilo. Já não iria chegar tão cedo à prova, mas chegaria e isso era o que realmente interessava.

Mas isso não seria assim tão fácil, pois passados 7 minutos lá estava ele parado na berma da estrada a olhar para a corrente da bicicleta que se tinha entretanto partido.

— Oh meu Deus! Primeiro o carro. Agora a porcaria da corrente que se parte! Há mais alguma coisa para acontecer, por Deus?! — disse David, num tom de suspiro.

Mesmo assim não desistiu e tentou arranjar uma solução para o caso. Como não lhe ocorreu mais nada, decidiu começar a andar em direcção ao local da corrida, numa tentativa desesperada de não perder mais tempo e de estimular a mente para que encontrasse uma solução. Solução essa que chegou rapidamente.

Ao passar pela entrada de um centro comercial, não evitou olhar para o interior e vislumbrou aquilo que lhe pareceu, na altura, ser uma boa solução: junto à porta estava um segwey. Rapidamente apercebeu-se que se tratava do meio de transporte de um dos seguranças do centro comercial que tinha ido à casa-de-banho e deixado ali aquele veiculo à mão de semear. Sem pensar, apressou-se a entrar, montou-se no segwey e saiu para a rua, seguindo depois em direcção ao seu tão ansiado destino: a corrida de São Silvestre.

Apesar de aquele ser um meio de transporte vagaroso, ao menos não teria de ir a pé e mais minuto, menos minuto, lá chegaria ao seu destino. Mas tal não se veio a confirmar…

Depois de alguns minutos a desbravar asfalto — e quando David estava a apanhar o jeito ao segwey — eis que o veiculo começou a emitir um estranho sinal sonoro e decidiu parar de rolar. Após alguns segundos de volta do segwey, David lá se apercebeu de que o problema era só e apenas um: falta de bateria. O Segwey ficara sem bateria, e David estava, uma vez mais, sem um meio de transporte para o levar até à corrida de São Silvestre. O stress e a revolta começaram a tomar conta de si, mas David pensou no seu pai, na sua esposa e, acima de tudo, na promessa que tinha feito ao seu pai, na hora de despedida, de que iria participar na corrida de São Silvestre e que a iria vencer.

Pensou em várias soluções, mas nada parecia fazer sentido. Até que avisou, ao longe, um veículo a vir na sua direcção. Para gáudio de David, tratava-se de um táxi. Esboçou um sorriso, fez sinal ao taxista, e momentos depois já estava no seu interior a caminho da São Silvestre.

— Com que então, vai participar na corrida, é?! — perguntou, a dada altura, o taxista.

— Vou sim, senhor! Como é que sabe isso? — disse David, algo surpreendido pela pergunta do taxista.

— Porque você já vem vestido para correr e, pela morada que me indicou, eu percebi logo que ia participar na… — Estava a responder o taxista quando foi interrompido pelo som assustador daquilo que parecia ser uma pequena explosão.

— O que foi isto?! — gritou David, algo assustado.

— Parece que temos um furo! — respondeu o taxista, visivelmente aborrecido.

O taxista encostou à berma e, após examinar o furo, dirigiu-se à parte de trás do carro e disse a David:

— Acho que é melhor ir andando, porque o furo é grande e eu não tenho pneu sobresselente, porque tive um furo ontem e ainda não comprei um pneu novo…

David nem chegou a responder ao taxista. Pegou no seu saco de desporto, saiu do táxi e seguiu viagem a pé. Aquele estava a ser um dia simplesmente horrível. Mas ele não iria desistir, pois tinha uma promessa para cumprir. Ele tinha de chegar à corrida de São Silvestre. E mais do que isso: ele tinha de a vencer. Desse por onde desse, ele tinha de deixar o seu pai orgulhoso.

Cabisbaixo e completamente desanimado, David seguia a pé pela berma da estrada quando foi ultrapassado por um jovem que seguia em cima de um skate.

— Vê lá por onde andas com esse skate, mas é! — vociferou David, claramente saturado de todos os imprevistos que já se tinham sucedido naquele dia.

“Um skate”, pensou. “É isso mesmo!”

Desatou a correr atrás do jovem skater, conseguindo negociar com o rapaz a troca das sapatilhas do seu pai pelo skate. Teria de correr descalço na São Silvestre, mas ao menos conseguiria chegar a tempo da prova.

Andar de skate nunca foi o seu forte, mas passados alguns minutos e já deslizava no asfalto em grande estilo, como se tivesse nascido para aquilo. Apesar de estar tremendamente cansado com todas aquelas aventuras, David esboçava um sorriso por saber que iria conseguir chegar a tempo de participar na São Silvestre — e que a ia vencer para o seu pai.

Mas bastaram uns míseros milésimos de segundo para que tudo fosse por água abaixo. David nem teve tempo de se aperceber como tudo aconteceu, sentindo só a forte pancada que deu ao bater com a cabeça no alcatrão da estrada após ter sido atropelado por uma carrinha que tinha passado um sinal vermelho.

A escuridão apoderou-se de David, e por momentos deixou de ouvir qualquer som. Só o vazio, a escuridão, o absorvia. Foi então que uma forte luz branca começou a queimar-lhe os olhos…

David abriu os olhos com dificuldade e viu uma sombra a aproximar-se de si. Olhou em  redor e toda a escuridão tinha desaparecido, e agora apenas o branco imperava.

— Olá, puto! — disse-lhe a sombra que, agora, já estava ao lado de David.

A voz era-lhe familiar. Aquela sombra era nada mais, nada menos, que o seu pai que tinha falecido. David ficou por momentos boquiaberto, mas depois disse:

— P… pai? És tu?

— Sim, sou eu…

— M… Mas… tu faleceste. Tu tinhas falecido. Tu… — A voz de David estava agora embargada de emoção.

— E faleci, puto.

— Então… Isso quer dizer que… que… eu também faleci?!

— Lamento, puto.

David começou a chorar. Não por ter falecido. Mas sim, por isso significar que não tinha conseguido sequer participar na corrida de São Silvestre, quando mais a vencer em honra do seu pai.

— Pai… Desculpa… Desculpa não ter conseguido vencer a São Silvestre… Eu queria homenagear-te! Desculpa, fui lento demais…

— Não te preocupes, puto. Não foste nada lento, antes pelo contrário… — O pai de David parecia sorrir.

— Como assim não fui lento, pai? Eu não consegui chegar sequer a tempo da prova, caramba!

— Puto… Podes não ter chegado a tempo da corrida de São Silvestre, mas que foste rápido como o caraças a chegar cá acima, lá isso fostes, porra!

FIM