Sara Serpa & André Matos – Entre o Sonho e a Realidade

Existem cada vez mais exemplos de projectos musicais de excelência concretizados por portugueses…que vivem/trabalham no estrangeiro. E se, por um lado, isso lhes confere um público muito maior logo desde o ponto de partida, por outro cria o perverso efeito de “famosos lá fora, mas quase desconhecidos cá dentro”.

A dupla Sara Serpa e André Matos é mais um dos diversos exemplos de talento em estado puro elogiado, e premiado, em todo o mundo mas ainda anónimo em Portugal. O lançamento do seu mais recente álbum, “All The Dreams”, foi a oportunidade perfeita para uma conversa franca com a dupla lusitana que está a conquistar o mundo do Jazz.

Impõem-se o agradecimento da praxe à Music in My Soul pela gentileza e profissionalismo com que trabalham, sem a sua colaboração esta entrevista nunca teria sido possível, assim como à Sara Serpa e ao André Matos, pela disponibilidade em conversar com o Ideias e Opiniões.

1) Qual era a vossa relação com a música durante a infância e a adolescência? Que referências musicais tinham nessa altura?

Sara Serpa – Comecei a tocar piano aos 7 anos na Academia dos Amadores de Música, e simultaneamente a cantar num coro, com o qual tinha bastantes concertos e viagens. Neste contexto, ouvia/ tocava música erudita e no coro essencialmente música antiga.

Estudei no Conservatório de Música Nacional, Piano e Canto. A partir dos 16 anos comecei a procura de outros contextos musicais, mas sempre com um pé na música clássica. Punk, rock, música electrónica, música brasileira. Aos 22 entrei no Hot Clube. Os Beatles também estiveram sempre presentes na minha adolescência!

André Matos – Comecei a tocar aos 10 anos e as referências até à adolescência foram muitas: Beatles, Creedence Clearwater Revival, Muddy Waters, John Lee Hooker, ACDC, Nirvana, Guns N Roses, Led Zeppelin, Jimi Hendrix, Dave Brubeck, Joe Pass, Wes Montgomery. E claro os meus professores: Pedro D´Orey, Fernando Valente, António Sousa e Mário Delgado.

Houve também dois concertos que provocaram uma certa mudança: Joe Louis Walker no CCB e George Shearing no Casino Estoril.

2) Desde sempre que queriam ser músicos ou a pequena Sara Serpa e o pequeno André Matos tinham outros sonhos e ambições?

Sara Serpa – Nunca tive ambição de ser músico, apesar de a música sempre ter tido um papel importante na minha vida. Quando terminei o liceu fui para a Faculdade de Belas Artes para estudar pintura, onde estive 2 anos. Fui depois para o ISPA onde me licenciei em Reabilitação e Inserção Social. Os meus interesses eram muito variados.

André Matos – Sempre sonhei fazer música.

Sara Serpa e André Matos
Sara Serpa e André Matos

3) Quais foram os vossos percursos até formarem esta dupla de sucesso?

Sara Serpa – Depois do Conservatório e após um breve hiato de escolas de música, entrei no Hot Clube em 2001 e, passados dois anos, conheci o André quando vim a Boston pela primeira vez, em 2003, para um curso de Verão.

Nessa altura ainda era estudante do Hot Clube e procurava da minha identidade como músico. A partir daí o André foi uma presença constante no meu desenvolvimento como cantora e compositora.

André Matos – Estudei no Hot Clube antes de ir para a Berklee College of Music em 2000. Foi aí que nos conhecemos em 2003.

4) Alguma vez ponderaram em dar um nome à vossa parceria ou desde o início que definiram que se apresentariam com os vossos próprios nomes? 

Talvez inicialmente tenhamos pensado em dar um nome ao duo, mas nada nos ocorreu e assim ficou. (Risos)

5) Como se conheceram? E quanto tempo separou esse momento da criação da primeira música original em duo?

Sara Serpa – Conhecemo-nos através da música. E desde aí sempre procuramos tocar em duo, forçando -nos a um desafio inspirador. Demorou bastante tempo até assumirmos o nosso trabalho de duo: foi só depois de quase 10 anos a trabalhar juntos que finalmente decidimos que tínhamos que escrever música para nós e gravar um disco.

6) Como, quando, e porquê surgem os Estados Unidos da América nas vossas vidas?

Sara Serpa – Estudar fora do país foi o meu desejo desde que entrei no Hot Clube. Estava muito sequiosa de desafios e nova informação. Depois de ter ido a Boston pela primeira vez, no Verão de 2003, tornou- se claro para mim que para estudar jazz tinha que vir para os EUA.

André Matos – Foi uma sorte poder ter vindo estudar tão novo para Boston. Procurei opções para ir para fora e acabei por ganhar uma bolsa para a Berklee, o que tornou a decisão mais fácil. E claro que aqui está presente uma tradição educativa no jazz e na música improvisada há muito mais tempo do que em qualquer outro país.

7) Entretanto desembarcamos em 2014 e surge “Primavera”, o vosso álbum de estreia. Descrevam-nos o que motivou e inspirou este disco, assim como as histórias, aventuras e sentimentos que nele podemos encontrar!

Sara Serpa – Como disse anteriormente, em 2013 impusemos uma meta: teria que ser naquele ano que iríamos gravar o nosso disco com música escrita especificamente para o duo.

Entretanto esperávamos também a chegada do nosso filho, o que tornou urgente a conclusão do disco. 2013 foi um bom ano de criação e descoberta, tanto a nível musical como pessoal.

 8) Esperavam que o vosso primeiro álbum tivesse tanto impacto internacional? As excelentes críticas, e os muitos elogios, que receberam traduziram-se num maior impacto da vossa música da nível internacional?

Sara Serpa – Ficamos muito felizes obviamente. É sempre bom saber que o nosso trabalho é apreciado. Foi também uma prova que a persistência, paciência e trabalho focado tem bons resultados. O mais importante é que ficamos muito orgulhosos do disco.

André Matos – É verdade que temos muita gente que mostra gostar da música que fizemos nestes dois álbuns, talvez mais do que em qualquer outro projecto. E sim, talvez tenha tido mais impacto internacional, temos fãs pelo mundo inteiro.

Há músicos a aprender as nossas canções nos Estados Unidos, no Chile, no Brasil e em Portugal e isso, claro, deixa-nos contentes e com vontade de fazer mais.

9) Por entre elogios e distinções passam dois anos e chega até nós o recente “All The Dreams”. Contem-nos tudo sobre este disco que, apesar de ter acabado de chegar às bancas, já deu origem a mais uma série de elogios a nível mundial!

Sara Serpa – O novo disco é uma continuação do trabalho iniciado com “Primavera”. Continuamos a usar o estúdio como nosso aliado, fizemos várias sessões, e usamos mais a nossa língua, o Português. Usamos poemas que nos inspiram e fomos criando um mundo muito alternativo que nos permitiu desligar da realidade.

André Matos – Tem um ambiente um pouco diferente do “Primavera”, mas não foi uma decisão premeditada, foi mais um processo que se foi desenvolvendo à medida que íamos trabalhando cada tema. O resultado poderá ser talvez uma música mais apurada e mais sofisticado ao nível de som e produção.

Capa do disco "All The Dreams", de Sara Serpa & André Matos
Capa do disco “All The Dreams”, de Sara Serpa & André Matos

10) O artwork que envolve este disco é, sem dúvida alguma, dos mais extraordinários que vi este ano! Quem foi o(a) responsável por este trabalho maravilhoso? Tiveram uma palavra a dizer em alguma fase do processo? 

Sara Serpa – É da autoria do Travassos, que faz o design das capas para a editora Clean Feed. Sempre admirámos o trabalho dele, pedimos para ele fazer a capa e ele fez este desenho lindo e o processo foi muito fácil. A única coisa que mencionámos foi estrelas/constelações.

11) Esta aventura no mundo da música já vos levou a actuar em países como Brasil, Uruguai, Argentina ou mesmo Holanda e Alemanha. Todos os países, e os respectivos públicos, reagiam de forma semelhante à vossa música ou foram surpreendidos por algumas especificidades que não esperavam encontrar? 

André Matos – Nesses vários países onde actuámos, foi sempre em ocasiões distintas, por vezes em clubes outras em festivais. No geral, temos sido sempre bem recebidos. Algumas vezes as pessoas mostram-se algo surpreendidas e curiosas pela música que fazemos: pela língua portuguesa, pelos temas cantados sem letra, pela combinação de sons ou mesmo por tocarmos maioritariamente música original.

Mas claro que há à partida reacções diferentes em cada audiência. Tentamos não nos focar demasiado nesse aspecto até porque no momento alguns sinais do público podem não ser sintomáticos do que se está a passar.

Por exemplo: há vezes em que uma sala calada e fria pode ser intimidante, e a posteriori damo-nos conta que afinal estavam apenas todos a ouvir ávida e atentamente e no final vêm ter connosco com grande emoção.

12) Qual a opinião que os povos dos países por onde passaram têm relativamente a Portugal e à música portuguesa? Continuamos a ser o país do Fado e pouco mais ou a internet, e as redes sociais em particular, têm ajudado na promoção de outros músicos/bandas e estilos musicais?

André Matos – É difícil responder a essa pergunta. A nós pessoalmente é um facto que nos fazem sempre a mesma pergunta: “Tocam Fado? E música brasileira?”. Por um lado esse fenómeno ainda acontece. Mas algumas vezes as pessoas identificam a nossa música como Portuguesa, por algum tipo de cor ou energia que sentem no que ouvem, e isso deixa-nos contentes.

No entanto, não exploramos muito esse tema se a música é Portuguesa, se é Jazz, enfim… São apenas canções que fazemos com as ferramentas que conhecemos e dominamos. Em relação à internet, sim, é possível que hoje em dia se torne mais fácil comunicar a música e a cultura fora do “mainstream”.

13) Por falar em palcos e em público: o palco e o público dão, ou retiram, confiança a quem os enfrenta?

Sim e não. Toda a gente que actua ou fala em frente a uma audiência sente, em algum momento, alguma pressão. É tudo uma questão de experiência.

A pressão poder ser usada a nosso favor, a melhor estratégia é transformá-la em concentração e partir daí viver cada momento (da música, no nosso caso).

14) Já concretizaram diversas colaborações com outros músicos/cantores ao longo da vossa carreira. Como surgiram essas colaborações e o que fica de todas essas trocas de talento, experiências, vivências e personalidades?

Fica sempre muita coisa! No nosso mundo artístico cada colaboração é fulcral para definir o nosso ser musical. Houve várias pessoas que foram e têm sido muito importantes para a definição do nosso duo, sejam mentores ou colaborações. São eles: Ran Blake, Danilo Perez, Sophia Rosoff, Guillermo Klein, Pete Rende, Billy Mintz, Greg Osby, Leo Genovese.

15) Quando terminam um disco começam logo a pensar no próximo ou precisam de um período sabático antes de se atirarem de cabeça a um novo desafio? Ou seja, o que o Ideias e Opiniões quer realmente saber é: já têm algumas novas músicas escritas/compostas?

Sim, temos sempre algumas ideias em gestação embora acabemos por respeitar um certo período de tempo para o disco se sentir “fresco”. O interregno é uma boa oportunidade para trabalhar noutros projectos que estão na calha.

16) A vida de músico é feita de contrastes: da solidão que envolve a criação e a escrita de músicas e letras em casa ou no estúdio, à apoteose e loucura que pode ser estar em palco em frente a centenas de pessoas, por exemplo. É-vos fácil gerir os pensamentos, as emoções e as expectativas ou todos estes altos e baixos (e variações de adrenalina) tornam a vossa profissão numa autêntica aventura?

Excelente questão. A nossa profissão é uma aventura. Primeiro porque ao contrário de um emprego “normal”, se nós não pomos a coisa a funcionar, nada acontece. E depois, porque o nosso dia-a-dia é também uma aventura: arranjar tempo para essa solidão para praticar, escrever e trabalhar a música; dar aulas; tocar concertos; viajar de vez em quando para actuar; gravar etc.

A isto juntamos a intensidade de uma cidade como Nova Iorque. Não é fácil gerir todas as emoções e pensamentos, mas vamos aprendendo. Temos que estar sempre alerta e prontos para aprender. Tudo isso (a sensação depois de um concerto ou de um dia no estúdio, o que sentimos no momento de tocar, de criar, como vivemos cada um destes processo) é no final muito recompensador.

17) Entrámos recentemente na segunda metade de 2016 por isso esta é a altura ideal para um balanço musical do ano. Na vossa opinião qual é, até agora, o Melhor Álbum Nacional e o Melhor Álbum Internacional do ano?

A música que ouvimos é díspar e não exclusivamente deste ano, por isso a nossa opinião é limitada e a eleição de melhores discos deve ficar para os críticos.

Mas do que ouvimos, podemos recomendar os discos do trompetista Gonçalo Marques, do baixista Demian Cabaud e do guitarrista André Santos, todos eles de 2016 e da novíssima editora “Robalo”.

18) Que músicas, álbuns ou artistas mais têm ouvido ultimamente?

Nas últimas semanas ouvimos: Gonçalo Marques, Demian Cabaud, André Santos, Brian Eno, Masabumi Kikuchi, Mercedes Sosa, Radiohead, Ran Blake, Schubert, Billy Mintz, Russ Lossing, Andrew Cyrille 4tet, Jakob Bro trio, Vijay Iyer, Jason Moran, Jen Shyu, Henry Threadgill, Steve Coleman, Kris Davis, entre muitas outras coisas.

19) A que formato são verdadeiramente fiéis: ao Vinyl, à K7, ao CD ou ao formato digital?

Usamos os quatro mas sobretudo CD, Vinyl e digital.

Sara Serpa
(O Artwok) “É da autoria do Travassos, que faz o design das capas para a editora Clean Feed. A única coisa que mencionámos foi estrelas/constelações.”

20) Por falar em formato digital….encaram o streaming como um aliado ou antes como um inimigo silencioso? O poder viral do streaming, e das redes sociais, é uma forma de potenciar o vosso trabalho ou as parcas receitas que daí advêm ainda não compensam essa aposta?

A menos que muita coisa mude, e como a maior parte dos músicos do nosso meio, somos contra o streaming, o spotify, pandora e todas as plataformas do género, mas não há muito que possamos fazer, senão esperar que o consumidor da nossa música tenha o discernimento para perceber qual a melhor maneira para ouvir a nossa música. É um tópico no qual nos poderíamos alongar bastante.

21) Para finalizar em beleza: onde nos podemos manter actualizados sobre a vossa carreira?

Através do nosso site, www.serpamatos.com, ou a nossa Página Oficial de Facebook.

Agradecimentos: Music In My Soul; Sara Serpa & André Matos.