Serei sempre Charlie Hebdo

Às 10:30 da manhã, hora de Lisboa, decorria no número 10 da Rua Nicolas Appert mais uma das muitas reuniões de redação de Charlie Hebdo. O stress de quem trabalha na redação de um jornal contrastava com a calma com que dois indivíduos encapuzados saíam do seu Citroen C3 com as suas Kalashnikov prontos a ceifar vidas em nome de uma verdade irrevogável. “Vingámos o profeta Maomé”, disseram. Morreram 12 pessoas: oito jornalistas, dois polícias, um visitante do jornal e o porteiro do prédio. Primeiro enganaram-se na porta, depois perpetuaram o ódio.

O ataque contra Charlie Hebdo deixou milhões de pessoas de luto. Só na Place de La Republique foram 35 mil pessoas a sair à rua e para Sábado está marcada uma marcha republicana na capital. “Je suis Charlie” tornou-se no lema da demonstração de solidariedade para com as vítimas, que no fundo, fomos todos nós. Depressa se percebe que este atentado não foi um simples ataque terrorista mas sim um ataque àquilo que as democracias mais prezam, a liberdade de expressão. Rude golpe este. Uma sociedade livre tem sempre inimigos que se sentem ameaçados com a crítica e a opinião, a história está repleta de exemplos que o confirmam, mas felizmente a democracia vive e a liberdade também. Cabe-nos a nós, cidadãos livres, continuar a lutar contra as ofensivas externas que ameaçam a nossa forma de viver, de pensar, de expressar.

“Era natural”. Foram estas as palavras de Seixas da Costa, ex-embaixador português em França entre 2009 e 2013. A verdade é que o primeiro-ministro francês já tinha avisado, há uma semana atrás, que a França estava sob ameaça iminente de um atentado terrorista mas nunca se está preparado para assistir a atos de barbárie como o que se sucedeu. As reações políticas foram imediatas. Marie Le Pen foi das primeiras a pronunciar-se sobre o acontecimento dizendo-se “horrorizada” com o ocorrido e François Hollande, Presidente da República francesa, deslocou-se de imediato ao local apelando à união dos franceses e a uma resposta com firmeza e unidade nacional. Não podia estar mais de acordo. Chega de morte e selvajaria! Não queremos mártires, queremos paz e liberdade. A resposta deve chegar. Deve ser dada não só pela França como por toda a comunidade internacional. Mas há que ter cuidado e muita cautela. O ódio e a revolta são sentimentos plásticos e maleáveis que podem ser utilizados por cabeças fracas. Não confundamos aquelas comunidades árabes e muçulmanas que vivem em Estados democráticos e que respeitam, tanto quanto nós, a liberdade de expressão e os Direitos do Homem. Não confundamos o Islão com o extremismo religioso. Não confundamos fé com terrorismo.

É com pesar e tristeza que vou escrevendo estas linhas. Como jovem estudante que sou, criado e educado em liberdade, olho para acontecimentos como este com profunda revolta e inquietação. A vida humana tornou-se supérflua para quem clama por um mundo onde não existe espaço para a discórdia e para o respeito entre pares. A tolerância é um projeto base fundamental de qualquer sociedade. Ou pelo menos assim o devia ser. Não nos deixemos intimidar por estes fulanos que utilizam o medo para propagandear um ideal (e não uma fé). Não precisamos de muletas de espírito, deixemos isso para os fracos e para os que não conseguem pensar em soluções num contexto internacional e que não conseguem colocar de lado as suas diferenças e concentrar-se nas suas parecenças. É mais o que nos une (Homens) do que aquilo que nos separa. Continuarei a pensar assim e a acreditar, ainda que ingenuamente, que a construção de um mundo melhor é possível. Um mundo sem violência. Um mundo sem medo. A religião não é uma coisa má. Apela ao espiritual e por isso é passível de ser deturpada e utilizada para fins que não são os seus. Como diria Cabu nos seus desenhos em referência ao profeta Maomé: “Como é duro ser amado por imbecis”.

“Prefiro morrer de pé a viver de joelhos”. Estas são palavras de Charb, diretor do Charlie. Como cronista, sinto-me bastante sentido e solidário com o massacre à melhor arma de qualquer democracia, ao último bastião de defesa das liberdades individuais e coletivas, a liberdade de imprensa. Podem matar a caneta, mas nunca matarão a ideia. Obrigado Charb, Cabu, Wolinski e Tignous, obrigado a todos os trabalhadores de Charlie Hebdo, obrigado a todos os jornalistas e cartoonistas do mundo. Vocês são arma do cidadão comum. Vocês são a palavra que não mata mas faz moça. Não desistiremos de dizer aquilo que achamos que tem de ser dito. A liberdade continuará a ser defendida pela ciência, pelas artes, pelas imagens, pela escrita, pela palavra. Não abdicaremos do propósito mais antigo e ameaçado do mundo, a liberdade. Por isso digo e infindavelmente direi: Serei sempre Charlie Hebdo!

Artigo de Diogo Spencer