Tareias do pai – porque sim

Nos tempos da minha adolescência tive uma amiga que diariamente levava tareias do pai. Porquê? – porque sim. Este tinha uma loja de móveis e era a filha quem tomava conta do estabelecimento – enquanto o pai deambulava pela cidade e arredores nos seus afazeres profissionais e pessoais.  A loja tinha uma cave e o acesso à mesma era feito por uma longa escadaria sem corrimão. Subia-se ou descia-se encostado à parede.

A minha amiga chamava-se Lurdes e o pai batia-lhe sempre que lhe apetecia – porque era considerado normal o pai ter a “propriedade” da filha e puni-la fisicamente a seu belo prazer. Pelos motivos mais singulares e sempre que lhe apetecia.

A Lurdes achava aquilo normal. Afinal, o pai também batia na mãe. E na outra mulher que tinha como amante. O teu pai não te bate?, perguntara ela, nem na tua mãe?  . No seu entender, era eu que vinha de uma família não normal, porque o meu pai não usava a sua autoridade masculina pela via da força.

Um dia assisti a uma tareia. Foi a única a que assisti. O pai da Lurdes começou a bater-lhe e foi-a empurrando até às escadas que davam acesso à cave – onde fazia os restauros de móveis mais antigos. Batia-lhe à minha frente, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo. Uma vez no topo das escadas, deu-lhe tal bofetada que a Lurdes desequilibrou-se e foi rolando pelas escadas abaixo até ao pavimento. Foram tantos os gritos – dela e meus – que alguns vizinhos vieram ver o que se passava. Mas o pai da Lurdes avisou-os que era apenas um pai a dar um correctivo na filha que se portara mal. Tareias de pai – porque sim.

A Lurdes não morreu: ficou toda dorida e cheia de nódoas negras, mas não morreu. Pouco tempo depois o pai levou-a dali para uma outra loja que tinha na margem sul e deixámos de a ver.

Largos anos passados, vi a Lurdes na rua. Estava quase igual. Casada com um restaurador de antiguidades que tinha uma loja lá para os lados da Estefânia. Tinha já dois filhos.

Foi um momento de felicidade o reencontro, apesar das nódoas negras que se mantinham nos braços e pernas. O teu pai? , perguntei, não me digas que ainda te bate…. Então a Lurdes tranquilizou-me. Que não. Isso era coisa do passado. O pai estava até muito doente. E as nódoas negras? , indaguei. Suspirou fundo: é o meu marido, confessou, mas nada parecido com o meu pai…por isso até estou bem e sempre tenho um homem que cuida de mim. 

Não voltei a ver a Lurdes. Não sei se ainda vive; se permite ainda ser sovada pelo marido, ou pelos filhos. Apenas sei que a violência doméstica não é um assunto do passado. Continua a ser uma realidade do presente. E o silêncio que a envolve, esse sim, é de quebrar. Mesmo que haja o medo.

Infelizmente, muitos são ainda os membros da polícia que confrontados com uma mulher que se queixa por maus tratos, continuam a sustentar uma espécie de irmandade com o seu género, fazendo as perguntas erradas, exibindo sorrisos e presunção.

outofafrica

Quando um homem precisa bater numa mulher – seja esta filha, esposa, namorada, noiva ou qualquer outra coisa – é porque está severa e incomensuravelmente doente. É obrigação de todos nós denunciar estas situações.

Porque a Lurdes pode ser qualquer uma de nós.