Uma aventura nos transportes públicos – Laura Paiva

Utilizar os transportes públicos é, por vezes, uma aventura que requer alguma paciência e tolerância.

Por norma consigo alhear-me do que me rodeia – em viagens mais longas, um bom livro é o meu companheiro; em viagens mais curtas, perco-me a observar a paisagem.

Não tenho por hábito criar conversa de circunstância mas, por vezes, é inevitável uma troca de olhares, até mesmo um sorriso, em sinal de aprovação ou desaprovação perante alguma ocorrência.

Há uns dias, numa viagem de cerca de 15 minutos, não consegui alhear-me e não houve nada que me permitisse elevar acima daquele acontecimento…
Mal entrei no autocarro, por sinal quase vazio, já era possível ouvir uma voz feminina cujo volume ultrapassava o admissível num espaço público. Para meu grande espanto, a pessoa em causa (uma jovem que julgo estaria na casa dos vinte anos) estava sentada num banco mesmo lá no fundo e não perto, como por momentos cheguei a pensar. Enquanto me dirigia ao lugar que escolhi para me sentar, percebi que a jovem falava ao telemóvel. O que ouvi a seguir feriu de morte os meus ouvidos.

“Pois… ontem fomos ao cinema…Quem?!?!? Eu e o Zé cxrxlhx, quem havia de ser? E tu sabes que aquela mxrdx agora tem lugares marcados??? Pxtx que pxrxx… é o filme era fixe mas estavam dois cxrxlhxs sentados nos nossos lugares, uma gaja e um gajo… e eu disse fxdx-sx queres ver que vou ter de armar a pxtx aqui… que julgas? mudaram-se pois…fxdx-sx que cxrxlhx de falta de respeito é esta?’’

E eu perguntava exactamente o mesmo… mas apenas mentalmente pois não queria ser alvo de toda aquela ira. E a conversa prosseguiu:

“Azar do cxrxlhx a pxtx que ficou ao meu lado parecia uma galinha… sempre c’a tromba arreganhada a filha da pxtx… fxdx-sx pá gaja… Mas mudando de assunto o Zé tá fxdxdx comigo… é que sabes, o Manel aquele cxbrxx teve a lata de vir ter comigo e perguntar-me se já o esqueci… olha o cxrxlhx… já não namoramos há quatro meses e só agora se lembrou…Eu disse ao Zé que não havia azar, que aquele fxlhx da pxtx já não me dizia nada…Ainda estou a pensar nisso… mas já disse ao Zé que fxdx-sx acho que vou mesmo para Espanha trabalhar”

A sério??? Eh pá nem mesmo os espanhóis merecem semelhante pérola… já estou com pena deles.

“Estou a caminho de casa… no autocarro fxdx-sx… não, não vim de comboio. Hoje apeteceu-me vir de autocarro…”

Que raio de sorte a minha! Eu, que raramente ando de autocarro, tinha mesmo de partilhar esta viagem com uma pessoa que possuí um vernáculo tão rico e ninguém com quem trocar um olhar de desaprovação para aliviar o peso que aquela conversa fez acumular em mim.

Ao sair do autocarro, senti um enorme alívio e compaixão… Compaixão pelas poucas pessoas que ficaram por ainda não terem chegado ao seu destino!


Crónica de Laura Paiva
O mundo por estes olhos